27 January 2007

FORA DO "MUNDO REAL"


A voz é cada vez mais a de um mineiro com séculos de sílica sedimentada nos pulmões. A cantar, no novo e outra vez óptimo Love And Theft, mas também a conversar com uma espécie de delegação da União Europeia — um jornalista por país — que se foi encontrar com ele mesmo à beira dos "Spanish steps" daquela Roma que cantou em "When I Build My Masterpiece". Ele, Bob Dylan, poeta laureado do rock, contraditório comentador político do mundo moderno, solipsista psicadélico radical, revolucionário/reaccionário absoluto.



Que, hoje, aos sessenta anos acabados de cumprir, com novíssimo bigode de Zorro latino, não tem a menor dúvida em afirmar: "Acerca de quê poderá alguém pensar em escrever que não veja todos os dias nos noticiários e nas televisões? As emoções humanas básicas permanecem as mesmas mas são os media que as dirigem... Rimbaud, Shelley, William Blake, Byron, quem são eles? Apenas poetas que temos a liberdade de conhecer mas que ninguém escuta na televisão. Os media acabaram de vez com a poesia e a literatura. Ninguém está disposto a desempenhar o papel de Kafka, de escrever para não haver ninguém que o leia. Quem escreve quer ser visto e lido. Ter, pelo menos, uma reacção. E é disso que os media se encarregam. Não se pode esperar melhor poesia do que a que se vê nos noticiários. Aí mostram-nos tudo o que é possível existir e mesmo aquilo com que nunca fomos sequer capazes de sonhar. O que pode fazer alguém que escreve? Todas as ideias são exibidas nos media muito antes de podermos aproximar-nos delas. Vivemos num mundo de ficção científica. A Disney conquistou o mundo. Este é um mundo de ficção científica Disney. Parques temáticos, ruas da moda, é tudo ficção científica. Por isso, se um autor tiver algo para dizer, deve fazê-lo fora disso. Fora do 'mundo real' que se transformou no mundo da ficção científica. Quer tenhamos consciência disso ou não. Tivemos a idade do oiro que terá sido a de Homero, depois a da prata, a do bronze, e, agora, somos bem capazes de estar a viver na idade da pedra. Ou na do silicone...".


A explicação do título do álbum, essa, é simples: "O amor e o roubo não são extremos opostos. São exactamente o mesmo. Como os dedos dentro de uma luva. Quando amamos, roubamos sempre alguma coisa a alguém". Depois, se alguém remete para a filiação na tradição norte-americana, ele diz só "John Hammond, o tipo que me 'descobriu' na CBS, ofereceu-me um álbum de Robert Johnson muito antes de ele ter sequer sido publicado. Havia muita gente que não fazia a menor ideia de que ele tinha existido. As gravações dele só existiam, quase secretamente, em pequenas editoras. Nessa altura, no início dos anos 60, a minha relação com a tradição popular americana era bastante mais próxima".






A verdade é que, mesmo quarenta anos depois da publicação do seu primeiro álbum, Dylan ainda não perdeu qualidades naquela sua peculiar arte de confundir jornalistas patetas dedicados à missão de lhe fazer perguntas igualmente tolas: "Uma genealogia para as minhas canções? Isso é tudo treta. Se investigar os meus discos, reparará que, como acontece com todos os autores, por vezes me repito. Mas não me parece que seja algo mais do que isso. Se existe uma continuidade entre o Bob Dylan dos anos 60 e o das décadas que se seguiram, é apenas uma continuidade biológica"; "Porque é que estão sempre a citar-me? Não presto a menor atenção às coisas que digo. Porque o haveriam vocês de o fazer? O meu trabalho é na área do entretenimento ligeiro". Ou, quando interrogado sobre o método da sua loucura criativa, "Não inventei nenhum método original de escrita. Tomo umas notas, imagino uma melodia ou duas, volto a elas mais tarde... A minha atitude é a de permitir que as coisas aconteçam e rejeitar o que não me parece que sirva. Deixo que uma certa 'stream of consciousness' funcione mas não me ponho a meditar em cada linha que escrevo. Não me sento exactamente no cadeirão para escrever. As frases encaixam-se ou não na estrutura do episódio que é cada canção. Têm de se resignar a um certo idioma. A forma não é livre e é inútil adequá-las a um determinado ponto de vista ideológico. Não é isso que se pede a uma canção, ela não o pode fazer. É verdade cheguei a fazê-lo e outros o fizeram também. Mas, à partida, nunca tive isso em mente". Ou ainda, sobre outra interrogação algo mais abstrusa, "É verdade, sim, já ouvi dizer que me queriam nomear para o Nobel. Isso iria por-me na companhia de quem? Hemingway? Ele escrevia para a 'Time Magazine'... John Steinbeck? Não me parece que pertença a essa categoria. Estarei acima ou abaixo dela? Quero lá saber...".



Noutro registo, há a novíssima cultura-jornalística-'Caras'-internacional com a qual Bob Dylan continua a lidar com as proverbiais e justíssimas duas pedras em cada mão: "Não, não sinto que faça realmente parte da cultura dos 'rich & famous'. Não fui eu que escolhi fazer aquilo que faço. O que faço escolheu-me a mim. Poderia ter sido algo de muito diferente: cientista, engenheiro, médico...". E que, num rastreio exemplificativo de quase duas horas de conversa com que, guerrilheiramente, se degladiou, se poderia sintetizar assim: (p: ainda se diverte com o que faz?) "O que é divertir-se?, Sim, diga-me, se for capaz, o que é divertir-se? Estou aqui, não estou? Poderia ter feito outra escolha?" (p: gostou de ganhar o Óscar?) "Não fui lá".(p: acha que é um reflexo do seu próprio tempo?) "Sempre, claro. Nunca poderia reflectir outro período, não lhe parece? Embora, provavelmente, reaja mais do que reflicta". (p: imagina-se a começar a cantar nos dias de hoje?) "Se se tiver o talento, a capacidade e o conhecimento para isso, porque não?". (p: de onde lhe continua a vir a energia?) "A energia é uma ficção. Tal como qualquer pessoa que aprenda a fazer alguma coisa, há certos estratagemas, códigos, técnicas que se põem em movimento. Há que saber usá-los de uma forma combustível. Essa tal energia em acção pode assemelhar-se a uma técnica. Mas é uma combinação feliz de técnica com emoção". Ou, no registo anti-tecno-moderno, "Sim, sim, estou certo que algum pervertido me há-de ter colocado na Internet...". Finalmente, a reacção ao nível "interpretativo/comemorativo": "Não, não me importa muito a análise que possam fazer das minhas canções seja ela de um ponto de vista freudiano, marxista, idealista..."; "Sim, celebrei os meus sessenta anos da maneira habitual: as velas, os amigos, a família. Espero bem ser 'younger than that now'...".


Numa modalidade um pouco menos tonta, há quem o questione acerca do papel dos produtores na sua música ou de como gravar uma voz tão singular como a sua ou as de Lou Reed ou Leonard Cohen. E, mesmo assim, não muito pacientemente, Deus, Dylan himself, responde: "Quando trabalhamos com produtores, eles têm a possibilidade de conduzir as nossas canções nesta ou naquela direcção. E, por vezes, não seria a direcção que nós mais desejaríamos. Muitos dos meus discos são atravessados por esse tipo de compromissos. O que se nota muito menos quando se trata de discos ao vivo. Nunca diria que sou um produtor de discos mas, se, de facto, possuirmos uma visão pessoal do que como a música deve soar, não existe nada que um produtor faça que nós não possamos fazer também". Siga: "Habitualmente, a ideia não é como gravar a minha voz mas sim como é que aquela particular canção deve soar. O lado audiófilo escapa-me bastante. Mas, se calhar, a solução ideal seria a de me sintonizar com a extensão de um determinado instrumento em particular. Sublinhar uma certa presença. Não me parece que a minha voz seja assim tão difícil de registar mas não conheço ninguém que tenha realmente compreendido como me deve gravar. Não há nenhum culpado em especial. A minha extensão vocal é que possui o seu sistema próprio". E a rematar, "Não sei muito bem como é que as vozes deles deveriam soar embora a do Leonard Cohen seja bastante mais compreensível do que a do Lou. Sempre me pareceu que a melhor maneira de lidar com a minha voz seriam os sistemas mais antiquados, analógicos, estéreo ou mono, de certeza, os mais simples". E, exemplificando um pouco com o novo álbum, "Uma canção como 'Po' Boy' canta-se a si mesma. Eu sou obrigado a cantar dessa forma. Ela poderia existir sem nenhum texto. Assenta exclusivamente no encadeamento de acordes sem nenhuma instrumentação a não ser uma guitarra muito minimalista".



Quanto ao público dos "fiéis", lamento muito muito ter de ser eu a informá-lo, mas é mesmo assim, tem muito pouco a esperar. É ele próprio, sua Dylanidade, quem desavergonhadamante o confessa: "Habitualmente, ignoro as pessoas na primeira fila dos concertos e toco para as das últimas filas. As das primeiras filas já estão habituadas aos concertos, passe-se o que se passar, vão gostar na mesma. Por isso, não é a essas que eu quero chegar". E reflectindo sobre os anos que, inexoravelmente, passam,"A única coisa que realmente nos une a todos é a mortalidade. Nada mais existe que nos torne a todos semelhantes. Não que eu reflicta muito sobre a minha mortalidade. É mais sobre o que se passa à minha volta com as pessoas que me são proximas".
Encerre-se a função: "Há muito pouco tempo, o Leonard Cohen disse-me que, ser considerado um poeta, era um fardo demasiado pesado para se carregar. Está de acordo?". Dylan: "Sei muito bem do que ele fala". "Isso era o que acontecia no século passado, não era?" "Muitas eras lá atrás, sim...". (2001)

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