Um ano antes de anunciar ter visto o futuro do rock’n’roll e que ele se chamava Bruce Springsteen, Jon Landau – na “Rolling Stone” de 30 de Agosto de 1973, escrevendo acerca de Pat Garrett & Billy the Kid, a banda sonora de Bob Dylan para o filme homónimo de Sam Peckinpah – imaginou ter avistado o passado: “A mais importante figura do rock branco dos anos 60 transformou-se numa das menos significativas dos anos 70. Mas o que causa maior perplexidade parece ser a deliberada intenção desse declínio”. Já não era exactamente a época de Self Portrait (1970), quando, como Dylan confessaria em Chronicles Volume One (2004), gravara um álbum duplo para o qual atirara “tudo o que colasse e não colasse à parede. (...) Convencera-me de que, quando a crítica demolisse a minha obra, o mesmo aconteceria comigo e o público me esqueceria”. Nessa altura, o que importava era enxotar os muitos que lhe exigiam “que saísse à rua e os conduzisse sabe-se lá onde, deixando de me esquivar aos meus deveres de porta-voz de uma geração. (...) Eu apenas cantara canções directas que falavam de realidades novas e poderosas. Tinha muito pouco em comum e sabia ainda menos de uma geração de que era o suposto porta-voz. (...) Sentia-me como um pedaço de carne atirado aos cães”.
Meses depois do texto de Landau, em "Wedding Song" (de Planet Waves, 1974), Dylan ainda acharia necessário reforçar esse ponto de vista: “It's never been my duty to remake the world at large, nor is it my intention to sound a battle charge”. Porque, como na mesma canção clarissimamente se escutava, aquilo que verdadeiramente, por essa altura, determinava todos os seus passos era a relação com Sara Lownds: “Ever since you walked right in, the circle's been complete, I've said goodbye to haunted rooms and faces in the street, to the courtyard of the jester which is hidden from the sun, I love you more than ever and I haven't yet begun”. Casados em 1965 durante um intervalo na primeira digressão “eléctrica” de Dylan pelos EUA, fora ela o seu indispensável ponto de apoio durante os perturbados anos que se seguiram ao suposto acidente de moto de 1966 e à quase reclusão que se auto-impusera.
Alguém, no entanto, iria interpor-se entre ambos e abalar esse precário equilíbrio enquanto, ao mesmo tempo, desimpedia o caminho para que Bob Dylan pudesse redescobrir o génio criativo do qual, desde Blonde On Blonde (1966), parecia ter-se desencontrado: Norman Raeben, um velho judeu-russo-ucraniano “mestre de pintura”, que o “reensinou a ver”. “Ele não ensinava a pintar nem a desenhar. A minha mão, a minha cabeça e os meus olhos não estavam coordenados. Ele permitiu-me realizar de modo consciente aquilo que eu, inconscientemente, sentia. Mas não estava certo de poder transportar isso para as canções”, diria ele mais tarde a Allen Ginsberg. E, se, por um lado, daí resultou um afastamento de Sara (“Voltava para casa e a minha mulher não entendia o que eu dizia, nem o que pensava e eu não conseguia explicar-lhe. Foi aí que o nosso casamento começou a desmoronar-se”), por outro, “a primeira coisa que fiz, depois das aulas com Raeben, foi escrever Blood On The Tracks. Era muito diferente do que estava para trás. Os textos têm um código. O passado, o presente e o futuro encontram-se na mesma sala”.
Quase inevitavelmente, Blood On The Tracks (1975) reflectiria a dor e a raiva dessa separação e, acabaria por ser considerado o melhor “break-up album” de sempre. Ou não. Nas Chronicles, Dylan assegura que, na verdade, o que o inspirou foi a leitura dos contos de Chekhov, nas "liner notes" de Biograph (1985), jura que "You’re a Big Girl Now" não era dirigida a Sara (“Não escrevo canções confessionais. Podem pensar que sim tal como também há quem julgue que Laurence Olivier é o Hamlet”) e, já em 2007, à “Rolling Stone”, voltaria a dizer que “As minhas canções não são sobre mim. Quem quer que afirme que são sobre mim escolheu o caminho errado”. Dylan sendo Dylan, não surpreende, porém, que, dois anos depois, tenha declarado ao “Huffington Post”: “Não sou um autor de teatro. Todas as pessoas nas minhas canções sou eu”. Ou “Je est un autre”.
O que, no fundo, importa é que Blood On The Tracks, incluindo preciosidades da estirpe de "Tangled Up In Blue", "Idiot Wind", "Simple Twist Of Fate", "Shelter From The Storm" ou "Lily, Rosemary and the Jack of Hearts" era a peça que, numa discografia ideal, deveria ter-se seguido a Blonde On Blonde. Mas que, como os seis CD na edição deluxe do volume 14 das Bootleg Series – More Blood, More Tracks – vêm, definitivamente, demonstrar, também não foi concluído sem sobressaltos: inicialmente gravado, em Setembro de 1974, em versão quase integralmente acústica nos A&R Recording Studios de Nova Iorque, três meses depois, já com a masterização e os "test pressings" realizados, Bob Dylan, de súbito, interrompe o processo e, em Minneapolis, com um grupo de músicos recrutados localmente, regrava metade do disco. As sessões de Nova Iorque – rapidamente convertidas em "bootlegs" – tornar-se-iam lendárias e, agora oficializadas, num total de 87 faixas nas quais, “em “tempo real”, somos testemunhas da génese do álbum, reabrem a discussão acerca do acerto da opção-Minneapolis.
Um outro olhar sobre o passado é também o que Paul Simon propõe com In The Blue Light: revisitar 10 canções daquela zona de sombra do seu reportório que designa por “almost right or overlooked”. Isto é, as que, embora nunca tendo constado da lista de pedidos dos fãs nem haverem trepado pelas tabelas de vendas, nada devem às que habitualmente se classificam como “greatest hits”, embora tivessem a ganhar com algo semelhante a “uma nova demão de tinta nas paredes de uma velha casa de família”. De facto, com metade dos temas oriundos de Hearts And Bones (1983) e You’re The One (2000) – dois dos mais injustamente mal amados álbuns de Simon – e os restantes colhidos nos recantos pouco iluminados de There Goes Rhymin' Simon (1973), Still Crazy After All These Years, One-Trick Pony (1980), The Rhythm of the Saints (1990) e So Beautiful or So What (2011), trata-se menos de um gesto de humildade de quem, aos 77 anos, promete não voltar a pisar os palcos do que de uma reafirmação da excepcionalidade antes não reconhecida.
Escoltado por uma brigada de executantes e arranjadores de luxo no que poderá ser a sua (pen)última obra – Wynton Marsalis transforma "Pigs, Sheep and Wolves" numa peça de jazz New Orleans cubista e "How The Heart Approaches What It Yearns" em exemplo de cool renascido; Bryce Dessner minimaliza "Can’t Run But" de modo neuroticamente obssessivo; Bill Frisell liquidifica a atmosfera onde quer que faça vibrar as cordas da guitarra; e o ensemble yMusic oferece a sua rigorosa geometria de câmara ao programa de puríssima levitação que é "René and Georgette Magritte With Their Dog After The War" –, Paul Simon, faz questão de deixar bem explícito que não é inferior a ninguém. Nem sequer ao velho rival Bob Dylan a quem nunca desculpou aquela noite de 31 de Março de 1964, no Gerde’s Folk City, quando ele se manifestou ruidosamente desatento ao desempenho de Simon & Garfunkel. O que teve por consequência "A Simple Desultory Philippic (or How I Was Robert McNamara'd into Submission)", de Parsley, Sage, Rosemary and Thyme (1966) – uma paródia do estilo dylaniano – ser-lhe endereçada. O machado de guerra terá já sido enterrado mas não consta que, no 75º aniversário de Simon, no mesmo dia em que a Dylan foi atribuído o Nobel da Literatura, tenham sido abertas garrafas de champanhe celebrando esse acontecimento.
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