03 March 2013

NA RUA, DE NOVO 


Página 172 da edição de 1989 da Penguin Encyclopedia Of Popular Music, entrada de Chico Buarque de Hollanda (ou, como lá consta, “Buarque, Chico de Hollanda”). Depois de informar que “nasceu em 1944, em São Paulo” – na realidade, o feliz acontecimento ocorreu no Rio de Janeiro –, filho de uma família de académicos abastados, que é o autor de "A Banda" e "A Pesar [sic] de Você" e foi objecto da censura do regime militar brasileiro, acrescenta: “Compôs ‘Grândola Vila Morena’, em 1975, hino da revolução portuguesa, cujo texto, mais tarde, adaptaria para o Brasil”. Na totalidade das 1378 páginas da enciclopédia não se descobre qualquer alusão a José Afonso. Hoje, provavelmente, já seria mais difícil repetir-se tal erro, pois, após "Grândola" – iniciando uma segunda e atarefadíssima etapa de vida politicamente activa – ter sido entoada pela primeira vez na Assembleia da República a 15 de Fevereiro, a interromper um discurso de Pedro Passos Coelho, uma busca sumária no Google através de “Grândola Vila Morena + portuguese prime minister” ou “Grândola Vila Morena + premier ministre du Portugal” oferece uma perspectiva bastante esclarecedora de como a canção saltou definitivamente as fronteiras e uma razoável parcela do mundo deixou de poder gozar de atenuantes para eventuais confusões. 




Não que ao seu quase meio século anterior de existência – "Grândola" foi, de facto, escrita por José Afonso em 1964 embora só gravada, no álbum Cantigas do Maio, em 1971 – escasseasse o reconhecimento: muito antes de servir de banda sonora a cappella para toda e qualquer aparição de ministro ou secretário de estado português, em Portugal ou alhures, contava já com cerca de duas dezenas de versões por músicos de diversos géneros, nacionalidades e importâncias. Verdadeiramente memorável é a do contrabaixista de jazz, Charlie Haden, no álbum de 1983, The Ballad Of The Fallen (álbum do ano para a “Down Beat”, em 1984), segundo volume da sua Liberation Music Orchestra, com arranjos de Carla Bley e a participação de Don Cherry, Michael Mantler, Paul Motian e Dewey Redman (a relação de Haden com Portugal vinha, aliás, de 1971, quando, no Festival de Jazz de Cascais, integrado no quarteto de Ornette Coleman, dedicara a sua "Song For Che" aos movimentos de libertação das colónias portuguesas, o que lhe proporcionaria a detenção pela PIDE/DGS no aeroporto de Lisboa e o convite para um conhecimento breve das instalações da António Maria Cardoso).




Mas as de Joan Baez, Amália Rodrigues, Nara Leão e Pascal Comelade não são medalhas muito menores, numa lista de tributos onde se inscrevem ainda, no território do jazz e domínios afins, as do Zé Eduardo Unit e da Orkest de Volharding (Holanda), roqueiramente electrificada, às mãos dos UHF e dos brasileiros Autoramas e 365, submetida a reconfigurações electrónicas por Vítor Rua e Gamma Ray Blast (José Paulo Andrade, ex-baixista dos Ocaso Épico), em graus diversos de cerimoniosa veneração, por finlandeses (Agit Prop), chilenos (Aparcoa), suecos (Brita Papini e Maria Ahlstrom), italianos (Canto Vivo) e alemães (Franz Josef Degenhardt), e, no patamar inferior da cadeia alimentar, Linda De Suza, Paula Ribas e Roberto Leal. Destino ilustre e pouco previsível para uma canção que, como conta o guitarrista Fernando Alvim no "booklet" de Cantigas do Maio (na reedição em curso da discografia de Afonso), nasceu, humildemente, a 17 de Maio de 1964, ao volante do automóvel que Zeca conduzia, no regresso de um concerto na Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense onde também conheceria Carlos Paredes ("O que esse bicho faz da guitarra!", escreveria José Afonso numa carta aos pais): “Ele ia cantando ao volante – até para não adormecer –, depois, começou a desenvolver a melodia e, quando chegou ao fim da viagem, pelas quatro da manhã, a canção estava feita”.



Dez anos mais tarde, a 29 de Março de 1974 (treze dias após o ensaio geral para a revolução que teria lugar cerca de um mês depois), no “Primeiro Encontro da Canção Portuguesa”, organizado, no Coliseu de Lisboa, pela Casa da Imprensa – que, segundo o jornalista Pedro Laranjeira, quase não aconteceu: “O regime já estava nitidamente em fase de implosão. Quiseram derrotar-nos não com uma proibição do Festival, mas com uma não-resposta. Até ao dia do espectáculo ainda não sabíamos se tínhamos, ou não, autorização. Por volta das 17 e 30 do dia 29, quando cheguei ao Coliseu, já havia muita gente à volta, e ao fundo da Avenida da Liberdade lá estava a polícia de choque... estava a desenhar-se ali um confronto!” –, os mui zelosos e raramente inteligentes funcionários da Comissão de Censura que esquadrinharam o reportório a ser interpretado em palco (participavam igualmente, entre outros, Adriano Correia de Oliveira, Fausto, Vitorino, Carlos Paredes e Manuel Freire) amaldiçoaram boa parte das canções mas deram a bênção aquela que, dali a quatro semanas, lhes iria retirar a tão acarinhada ocupação: a encerrar o espectáculo, cantada em coro pelas 7000 pessoas que enchiam a sala, "Grândola Vila Morena" tornava-se candidata evidente ao estatuto de senha para o golpe de Estado.



Na noite de 24 para 25 de Abril, cerca de hora e meia depois do primeiro sinal para o desencadeamento das operações militares ("E Depois do Adeus", de Paulo de Carvalho), no programa “Limite”, de Pedro Laranjeira, na Rádio Renascença, "Grândola" era a vitamina para as forças em movimento: tudo corria de acordo com o plano, havia que o conduzir até ao fim. "Vivi o 25 de Abril numa espécie de deslumbramento. Fui para o Carmo, andei por aí... Estava de tal modo entusiasmado com o fenómeno político que nem me apercebi bem, ou não dei importância a isso da ‘Grândola’. Só mais tarde, com o 28 de Setembro, o 11 de Março, quando recomeçaram os ataques fascistas e a ‘Grândola’ era cantada nos momentos de maior perigo ou entusiasmo, me apercebi bem de tudo o que ela significava - e, naturalmente, tive uma certa satisfação" diria, anos depois, José Afonso. Mas, mesmo então, não sonhava, de certeza, que aquela música que lhe surgira numa madrugada, gravara nos estúdios do Château d’Hérouville, perto de Paris, e que cantaria, pela primeira vez, em palco, em Santiago de Compostela (onde, desde Maio de 2009, existe um Parque José Afonso), na praça do Burgo das Nações, a 10 de Maio de 1972, viria, de novo, a recuperar de tal modo a vitalidade simbólica que já tivera.




A 16 de Outubro de 2012, no Facebook, a página "Grândola ao Dragão" desafiava os adeptos que iriam assistir, nessa noite, ao jogo da Selecção Nacional com a Irlanda do Norte, a “aos 20 minutos e 12 segundos de jogo (20:12=2012, o corrente ano), entoarem a uma só voz o ‘Grândola Vila Morena’, canto e senha que nos uniu em lutas passadas, canto e senha que de novo se erga e que proclame, através de todo o território e além-fronteiras, que, ombro a ombro, sabemos que outro caminho é possível e que iremos percorrê-lo (...) contra a troika, este governo e a austeridade”. Já, em Maio do ano anterior, António Fontes, deputado do PND, cantara a "Grândola" no plenário do Parlamento Regional da Madeira, “em defesa da liberdade de imprensa na região autónoma”. Mas seria apenas após o coral de S. Bento e o silenciamento de um ministro da República que, nesse episódio, deverá ter encontrado novos motivos para a sua “simplicidade da procura do conhecimento permanente”, que a "Grândola" – manifestando-se também, nos protestos de Madrid, pela Gran Vía e Calle de Alcalá, no dia a seguir ao momento-Passos Coelho, interpretada pela Orquestra Solfonica 15M – abandonaria o seu estatuto instaladamente institucional de “hino do 25 de Abril”, condenado a picar o ponto uma vez em cada ano, e regressaria às ruas, fora de horas e ignorando o calendário, como acontecera um segundo antes de quase se deixar capturar pelos museus da História. (segue aqui)

5 comments:

Anonymous said...

Grandolar, verbo dos comunas estalinistas

pcristov said...

belo texto. obrigado.

já agora, mera curiosidade, foste um dos 7000 a cantar em coro?

alexandra g. said...

conte lá, estou com o pcristov, mas sem essas familiaridades do "tu" :)

João Lisboa said...

"foste um dos 7000 a cantar em coro?"

Nope (na próxima vez que regressares ao good old west, explico-te porquê)

pcristov said...

deal.