26 December 2013

MIL ARDIS 


A realeza folk gosta de se apresentar na companhia de gatos: Dylan, deixou-se fotografar com eles em diversas circunstâncias, e, em especial, na capa de Bringing It All Back Home, com o seu "Rolling Stone" ao colo (em Rock Dreams, Guy Peellaert desenhá-lo-ia-o no interior de uma limusine abraçando outro tigre de bolso); Joan Baez, é omnipresente nas imagens do Google com uma pequena pantera negra nos braços; Joni Mitchell escreveu "Man From Mars" dedicada ao bem amado "Nietzsche" – arraçado de ocelote – e pintou-o (nomeadamente, na capa de Taming The Tiger); June Tabor escolheu-os para as capas de Abyssinians e Angel Tiger; Suzanne Vega não esconde o enlevo pelos "lounge tigers", "Caramel" e "Cinnamon", evocados em "Caramel" (que, bastante a propósito, seria incluída na banda sonora de The Truth About Cats And Dogs); e, acerca de Leonard Cohen, conhece-se a lenda dos seus poderes sobrenaturais de "cat whisperer", por meio dos quais terá devolvido a saúde ao felino "Hank" (assim baptizado em honra de Hank Williams). Mas, apesar disso, nenhum deles tinha tido, até agora, a honra de se juntar aos seus pares mais célebres do cinema como o "Orangey", de Breakfast At Tiffany's, o denunciante involuntário de Harry Lime/Orson Welles em O Terceiro Homem, o companheiro de Philip Marlowe no Long Goodbye, de Altman, ou a fabulosa assombração a preto e branco do genérico de Saul Bass para Walk On The Wild Side, coreografada sobre a música de Elmer Bernstein.



A sorte coube ao laranja, "Ulysses", encarregado de, em Inside Llewyn Davis, de Joel e Ethan Coen, representar o anónimo vadio que, na capa do álbum Inside Dave Van Ronk, espreita da mesma porta do Village a que este se encosta. Llewyn Davies não é Van Ronk, tal como o Salieri de Amadeus não era o Salieri histórico. Mas, nesta libérrima revisitação dos anos do folk revival nova-iorquino conduzida metaforicamente pela deambulação de um Ulysses de quatro patas, mais ou menos reconhecíveis ou com as identidades trocadas, não deixam de se encontrar marcas e figuras de uma era determinante para a música popular. Se Van Ronk era “o mayor de MacDougal Street” – esse santuário onde se situavam o Gerde’s Folk City, o Cafe Wha? ou o Gaslight Cafe, locais de peregrinação dos "beats", de Auden, Pollock, Miles Davis, Dylan Thomas, Gore Vidal e "tutti quanti" –, erudito supremo em matéria folk, isso não bastou para que, com o surgimento de Bob Dylan, em 1961 (a quem, em No Direction Home, de Scorsese, ele acusa justamente de lhe ter roubado o arranjo de "House Of The Rising Sun"), enquanto representante da geração de puristas ortodoxos, o seu tempo tivesse passado. Na banda sonora do filme (superiormente produzida por T Bone Burnett, reincidindo, ao lado dos Coen, após O Brother, Where Art Thou?), esse momento é assinalado pelo "Farewell", de Dylan, logo antes de "Green, Green, Rocky Road", do próprio Van Ronk. A restante cenografia musical – às mãos de Marcus Mumford, Punch Brothers e do improvável mas correctíssimo Justin Timberlake –, de tradicionais a temas de Tom Paxton, Brendan Behan e Ewan MacColl, é objecto de engenhosa reconstituição histórica. Tanto quanto os mil ardis de Ulysses.

2 comments:

alexandra g. said...

Maravilha (e não percebi metade das referências, oh ignorância!).
Temos leitora, nevertheless :)

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off the record(s)/p.s. - fiquei absolutamente extasiada quando vi o poster deste filme num jornal de leitura online. Falta-me ver o filme (along with some 623 other 623)

João Lisboa said...

"não percebi metade das referências"

Está lá tudo explicadinho. É só clicar nos sítios certos.