23 September 2012

PONTE SOBRE ÁGUAS INQUIETAS


Bill Fay - Life Is People

Quando, no início da década de 70 do século passado, os dois primeiros álbuns de Bill Fay foram publicados, alguém terá dito, convictamente, ao seu manager da altura, Terry Noon, que era “apenas uma questão de tempo até que a música dele fosse reconhecida”. Não podia estar mais certo. Embora devesse ter acrescentado a medida exacta desse tempo: à volta de quarenta anos. Na realidade, entre o assombroso Bill Fay (1970) e o actual Life Is People, as quatro décadas que decorreram não foram integralmente vazias na biografia musical de Fay: no ano a seguir à estreia, gravou Time Of The Last Persecution e o seu reiterado insucesso comercial (“vendeu cerca de 2000 cópias”, confessa, hoje, Fay, provavelmente, desconhecendo que, no eBay, as prensagens originais oscilam entre os 400 e os 1000 e tal dólares) valeu-lhe o fim do contrato com a Deram/Decca. O rosto hirsuto de sonâmbulo profeta bíblico do fim dos tempos que exibia na fotografia da capa terá estado na origem da lenda menor que, a partir daí, emergiu: qual Syd Barrett ou Salinger britânico, Bill Fay teria desertado da sociedade e abraçado uma vida de eremita antisocial, curando males do corpo e da mente. Nada mais longe da verdade: pura e simplesmente, ele que nunca tinha autenticamente sonhado com uma carreira de popstar, limitou-se, pacatamente, a regressar a uma existência das 9 às 5, trabalhando como operário fabril, jardineiro ou trabalhador rural. E continuou a compor, procurando, como diz ainda agora, à beira dos 70 anos, “descobrir os mistérios daquela longa sequência de teclas brancas e pretas” que lhe pudessem revelar os motivos por que não conseguia largar os discos de Bob Dylan e de Schoenberg e lhe fizessem ser capaz de explicar a admiração que "See Emily Play", dos Pink Floyd, lhe provocava. 



Entretanto, aqueles dois únicos álbuns gravados ambos em sessões únicas de estúdio, iam conquistando fãs. Tanto o primeiro – coisa da estatura de Goodbye And Hello, de Tim Buckley, ou de American Gothic, de David Ackles –, envolto nos vertiginosos arranjos orquestrais de Mike Gibbs (“quando cheguei ao estúdio imaginei que tinha entrado numa outra versão da 5ª do Beethoven”), como Last Persecution, dividido entre uma escrita mais convencional e as labaredas da guitarra "free" de Ray Russell, juntaram nos louvores Jim O’Rourke, Nick Cave, Marc Almond, Jeff Tweedy (Wilco) e David Tibet que, em mera genuflexão ou de forma mais expedita, cuidaram de, a conta gotas, ir retirando uma ou outra pérola do baú. Assim foram surgindo, em 2004, From the Bottom of an Old Grandfather Clock, uma óptima colecção de demos de entre 1966 e 1970 capaz de envergonhar Sgt. Peppers, Tomorrow, Tomorrow & Tomorrow (2005) e Still Some Light (2010) – no total, 63 canções oscilando entre registos artesanais e outros que poderiam figurar num "best of" de Robert Wyatt, Peter Hammil e Randy Newman, fossem eles como a Santíssima Trindade – e, desta vez, Life Is People. Mais dylaniano (e, talvez, também, mais newmaniano) do que antes, com um timbre de voz, aqui e ali, também próximo de Peter Gabriel, é um ciclo de canções apaziguadas e apaziguadoras que faz lembrar as daquela época em que Nick Cave se assumiu como “The Good Son”: o mundo pode ser um vale de lágrimas mas, algures, existe sempre uma "bridge over troubled water" (e o recorte de hino cristão comunitário atravessa, por vezes, excessivamente, todo o disco) através da qual se chega a mais verdes pastagens. Não será a obra-prima de Fay mas, ainda assim, é um belíssimo álbum. 

No comments: