19 November 2019

GRAVIDADE ZERO 


Lina (aliás, Lina Rodrigues, ex-Carolina), nasceu em Hamburgo mas veio muito cedo para Bragança, de onde, aos 15 anos, seguiu para o Porto com a intenção de estudar canto no conservatório local. Porém, apesar de ter arriscado alguns passos precoces no domínio da ópera, quando a professora lhe repetia que “Os sopranos não cantam de olhos fechados”, compreendeu que aquele nunca viria a ser o lugar onde iria sentir-se feliz. Foi em Lisboa, nas casas de fado, que, com Amália como estrela polar, descobriu, enfim, o rumo certo. Raül Refree (aliás, Raül Fernandez Miró), músico, compositor e produtor catalão oriundo da cena musical alternativa de Barcelona, enquanto jovem aluno de piano, deu-se igualmente mal com os professores que lhe calharam uma vez que não conseguia adaptar-se à rígida disciplina militar das escalas e arpejos de que a pedagogia clássica não abdica. “No género popular, também se abusou da técnica e do virtuosismo. É como se lançássemos pazadas de terra sobre uma canção e a tapássemos. A minha mão movimenta-se sozinha. Toco como me sai”, diz ele, agora que, vinte e poucos anos depois de ter entrado pela primeira vez num estúdio com os Corn Flakes para gravar Ménage, conta já uma dezena de álbuns a solo, outras tantas bandas sonoras para cinema e televisão, um ilustre CV na qualidade de produtor de gente ilustre – Lee Ranaldo (Sonic Youth), Josh Rouse, Sílvia Pérez Cruz, Rosalia – e uma mão bem cheia de colaborações e prémios. 


Não era inevitável mas existiam afinidades suficientes para que, movidas as pedras necessárias, Lina e Raül viessem a cruzar-se. Seria, no entanto, bastante difícil adivinhar que, do encontro, pudesse surgir algo de tão luminoso e imponderável como Lina_Raul Refree, uma radical transfiguração do reportório de Amália Rodrigues que dir-se-ia saída das mãos de Brian Eno ou Hector Zazou: sem a sombra de uma guitarra à vista mas rodeados de sintetizadores “vintage”, Moogs, Arps, Oberheims, Rolands e piano, Refree e Lina descarnam até ao osso onze fados clássicos, numa espécie de a cappella envolta em neblina na qual, pela voz em estado de graça, vão passando a coreografia aérea de "Gaivota" em gravidade zero e debruada a teclados minimais, os ameaçadores atonalismos heréticos de "Maldição", o tempestuoso rasgão hiper-oxigenado de "Quando Eu Era Pequenina", a paralizante assombração de "Medo" ou a moldura transparente de "Sta Luzia", transportando Amália a paragens onde ela nunca sonharia chegar. (22 de Novembro – São Luíz Teatro Municipal, Lisboa; 23 de Novembro – Centro Cultural e Congressos das Caldas Da Rainha; 24 dde Bovembro Convento de S. Francisco, Coimbra; 27 de Novembro – Theatro Circo, Braga)

1 comment:

Music lover said...

Muito, muito bom!
Não conhecia, passaram há dias num programa na TV.