O BAÚ BRANCO
Olha-se, de relance, a capa do duplo CD e a primeira sensação é que José Mário decidiu tirar partido do nome de família e, evocando uma outra distinta genealogia, publicar o seu “álbum branco”. Observando com um pouco mais de atenção, descobre-se, porém, que não, não se trata, de todo, de uma réplica da capa de Richard Hamilton para os Beatles: sob o nome do autor, em cinzento pálido, pode ler-se Inéditos 1967 – 1999. Se, por algum acaso, no entanto, se começasse a escuta do disco pela segunda metade do CD2, não seria impossível que a dúvida regressasse: "Fim de Verão (à maneira dos Conchas)" é uma cançoneta pop estival exumada por José Mário Branco da memória dos anos 60 – com todos os rigores de reconstituição histórica ao cuidado dos Ena Pá 2000 – para Agosto, filme de 1988, de Jorge Silva Melo. Não é o único exemplo de peça “de época” com essa origem: "Le Cafard" é “à maneira de Eddy Mitchell” (o cantor dos lendários Chaussettes Noires), e "Sotto Il Sole, Sulla Spiaggia", "Trompete Slow" e "Dô-Yô" são, respectivamente, "pastiches" de Adriano Celentano, Helmut Zacharias e The Shadows.
Talvez não se tivesse noção disso mas JMB escreveu consideravelmente para o cinema: estão aqui também as belíssimas "Cantar da Viúva de Emigrante" (de Gente do Norte, Leonel Brito, 1975) e "Fuga do Mar" (de O Ladrão do Pão, Noémia Delgado, 1979), mas também "Alma Herida", outra composição “à maneira de”, no caso, o bolerista cubano, Antonio Machin (A Raiz do Coração, Paulo Rocha, 1999), de entre as quase duas dezenas de filmes – de Luís Galvão Teles, César Monteiro, João Canijo, António-Pedro Vasconcelos, Solveig Nordlund... – para que compôs. Não se resume, naturalmente, a isto a abertura (nao exaustiva) do riquíssimo baú: ordenadas cronologicamente, de entre maquetes restauradas a partir das bobines originais, singles e temas que, há muito tempo, exigiam ser recuperados, há que ouvir (ou reouvir), obrigatoriamente, as fundadoras "Cantigas de Amigo" (incluindo "Mar de Vigo", de Martim Codax, excluída do EP original... por falta de espaço), as militantes "Mãos Ao Ar!", "Le Proscrit de 1871" (sobre texto do "communard" Eugène Châtelain) e a versão kurtweilliana de "Remendos e Côdeas", as duas exuberantes marchas populares, "Fim de Festa" e "São João do Porto" e, sobretudo, os três andamentos da completamente inédita "Fantaisie Languedocienne". para flauta, guitarra, violoncelo e piano.
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