Enquanto a pátria ardia, violentamente dividida entre direita e esquerda, algures pela linha do Estoril, a Banda do Casaco, um colectivo de geometria desvairadamente variável e alimentado a música medieval, folk bretã, tradicional portuguesa, improvisação de raiz jazzística e outros experimentalismos (musicais e poéticos) mais além, iniciava um percurso absolutamente singular: politicamente agnósticos – logo, suspeitos – mas nem por isso menos ávidos de opinar (“aprendizes da política, só na tactica do ‘empocha’, vem a tempestade mítica e a cabeça dá na rocha, mal a gente vem ao mundo, logo a gente vai ao fundo”, em "Natação Obrigatória", tanto cronicava o final da década de 70 como profetizava o futuro) e musicalmente desalinhados da predominante “intervenção”, António Avelar de Pinho (ex-Filarmónica Fraude e autor dos textos) e Nuno Rodrigues (ex-Música Novarum, compositor de todas as músicas “excepto a primeira do primeiro álbum” e, posteriormente, editor e "publisher"), foram o núcleo agregador. Em torno deles, durante nove anos (de 1975 a 1984) e sete álbuns, gravitaram quase seis dezenas de músicos, de Carlos Zíngaro a Helena Afonso, Celso de Carvalho, José Eduardo, Jerry Marotta, António Emiliano ou Né Ladeiras. Agora que a discografia integral é reeditada em duas luxuosas caixas com todas as mordomias acessórias habituais (DVD, raridades, extensos livretes contextualizadores) é o momento ideal para dar a palavra a Nuno Rodrigues e deixá-lo narrar a história.
A Banda do Casaco não vivia, evidentemente, fechada numa bolha mas tinha uma quase alergia ao espírito da sua época – anos 70 pós-25 de Abril e primeira metade de 80 – em que, particularmente na música, era praticamente obrigatório “ser de esquerda” e estar “ao serviço do povo”. Nas entrevistas da altura que surgem no DVD essa hostilidade é evidente. Isso era mesmo uma marca identitária do grupo?
Eu não via aquelas imagens há anos e, quando fui ao arquivo da RTP, fiquei um bocado aflito ao ouvir-me dizer “Nós somos burgueses!” Na altura, nunca o tinha perguntado a ninguém e achei aquele plural um pouco abusivo. Mas havia, de facto, um desalinhamento muito grande. E, quarenta anos depois, eu continuo bastante desalinhado. Olho a democracia com bastante timidez. Não me quero definir como um não-democrata mas tenho grandes reticências. O que há é um “por cima” e um “por baixo”. Quem está em cima sabe que irá estar por baixo e quem está em baixo, sabe que passará a estar em cima. E, depois, há quem esteja nas laterais.
Mas a Banda do Casaco parecia fazer gala desse desalinhamento o que, à época, se tornava, instantaneamente, suspeito...
Parece-me que era verdadeiramente sincero, não foi procurado. O António era também um desalinhado (muitas vezes, até andávamos desalinhados um com o outro e isso foi-se sentindo à medida que os anos iam passando).
A vossa reputação era tão duvidosa que, durante um concerto na Aula Magna, em 1976, em que tocaram vocês, a Brigada Vítor Jara e os Trovante, chegou a circular o boato de que a Banda tinha acabado de chegar de Londres onde teria gravado o hino do MIRN [fugaz partido de extrema-direita fundado por Kaúlza de Arriaga]...
O MIRN era a coisa mais reaccionária que havia. Só soube disso através da Né Ladeiras. Nesse concerto da Aula Magna, ela ainda estava com a Brigada Vítor Jara. Só quando, mais tarde, se juntou a nós é que nos contou essa história. Claro que houve uma provocação da nossa parte: entrámos de casaca justamente para provocar. Só que não estávamos à espera que aquilo estivesse tão escaldante. Tivemos de dizer ao Carlos Barreto para entrar em palco e ir improvisando até ver em que paravam as modas. Começámos a imaginar que íamos ser comidos vivos! A verdade é que eu nunca me vi como um tipo de direita. Tínhamos uma enorme curiosidade por uma grande quantidade de coisas mas essa curiosidade não estava virada para a direita. Parece-me que a Banda, agora, é muito mais consensual do que era na altura.
O que é interessante é que, tanto nessa altura como, em certa medida, ainda agora, existia uma relação muito idêntica em gente de esquerda e de direita com a cultura tradicional: naquela defesa dos valores culturais nacionais, das marcas antigas e “autênticas” que-nos-definem-como-povo... e, apesar de a Banda do Casaco ser muito mais experimental e anarquista, esse apego à música tradicional e às recolhas era exactamente igual ao que fazia ferver o GAC (menos a agenda política e as palavras de ordem)...
Tens noção de que estás a falar do outro grupo contemporâneo mais importante, não tens? Claro que esses nacionalismos e separatismos, hoje, em plena globalização, já não fazem muito sentido. Mas que outras coisas poderíamos nós ouvir? Lembro-me, já noutra fase, do Megalopolis, do Herbert Pagani: “Citoyens, citoyennes!...” e, depois, a pasta dentífrica governamental e os spots publicitários... fiquei doido com aquilo. E não tinha uma grande preocupação de catalogar à esquerda ou à direita. Houve uma altura em que pensei que era anarquista ou que era bombista. Mas sem bomba porque também se a tivesse não sabia onde a ia pôr. O António Pinho, no manifesto, dizia que “gostamos de achar bem quando se trata de achar bem e gostamos de achar mal quando se trata de achar mal”.
A própria ideia de ter um manifesto era coisa muito da época...
Só que era um manifesto que não nos colocava em lado nenhum! Aliás, também comecei pela parte da música medieval e gostava de coisas que tinha aprendido com o maestro Francisco d’Orey. Eu vivia com as janelas todas abertas lá para fora. Cheguei a ir com a Música Novarum a comícios na faculdade de Direito: aparecia com uma menina morena e outra loira a cantar aquelas coisas quando se estava em plena época da música de intervenção. Eu pensava “mas a noção do belo continua”. Depois, cada um terá a sua.
O salto dessa iniciação musical para o que veio a ser a Banda Do Casaco apenas ocorreu quando o António Pinho entrou na equação, não foi?
Sim. Mas é preciso entender o que era a Banda do Casaco. Começou por ser apenas um projecto e acabou por ser um conjunto de projectos. Se calhar, na verdade, nunca existiu um grupo. Eu e o António começávamos por escrever letras e músicas sem músicos. E, conforme as escrevíamos, assim os íamos buscar. Estive a contá-los: passaram por lá 56 músicos. Não era um grupo de estúdio e, muito menos, um grupo ao vivo. Não vou dizer que tenha sido uma escolha sábia mas conseguiu juntar-se um grupo de pessoas predispostas para o experimentalismo. Sempre tive uma certa pancada por experimentar sonoridades diferentes. Ia buscar instrumentos que não sabia tocar e tentava tocá-los: ponteira, bandoneon, ocarina, uma cromo-harp que comprei na Bretanha... Era, primeiro, um desafio para ver se conseguia aprender a tocá-los. Depois, era a questão do som: eu tocava com três cordas da guitarra afinadas em Ré. Mas, até dos tipos que tocavam comigo na banda, só o António Pinheiro da Silva me perguntou, uma vez, como é que eu tocava na guitarra porque ele não conseguia sacar a mesma sonoridade. Musicalmente, o que me interessava mais era aquilo que estava a acontecer na Bretanha, as Soeurs Goadec, Alan Stivell, não falando dos Malicorne. Tudo isso era, para mim, mais interessante do que, propriamente, o folk britânico se bem que também gostasse muito da Maddy Prior, da Sandy Denny, do Richard Thompson...
Sentes que a Banda era um grupo de tal modo singular que nunca poderia deixar descendência ou, apesar disso, consegues identificar alguma?
Não sei, suponho que alguma influência deveremos ter tido. Mas, se me perguntares por casos representativos, não me recordo de mais que um grupo chamado Pássaro que, há tempos, descobri na net a tocar o ‘Despique’, da Banda do Casaco. Houve aqueles grupos de que já falámos como o GAC e mesmo os Gaiteiros de Lisboa ou a Sétima Legião, embora, a Sétima, às vezes, me parecesse que tinha coisas demasiadamente "british". Mas, pelo lado do prazer da recolha também gostei imenso de ter produzido o álbum do Almanaque, do José Alberto Sardinha, que era a antítese do que nós fazíamos, era música tradicional em estado puro.
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