O FADISTA: A PERFEIÇÃO IDEAL DO IGNÓBIL (I)
(Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa,
fotógrafo não identificado)
fotógrafo não identificado)
"A aparição do fado engendra um novo factor do viver lisboeta - o fadista, o qual vem representar o papel que actualmente desempenha o voyou parisiense e o rough americano, e dar um novo cliché cinematográfico à vida de Lisboa. O fadista, minado de taras, avariado pelas bebidas fortes e pelas moléstias secretas, com o estômago dispéptico, o sangue descraseado e os ossos esponjados pelo mercúrio - é um produto heteromorfo de todos os vícios, atinge a perfeição ideal do ignóbil. Tem sempre um raciocínio imperioso, um argumento pouco friável, uma dialéctica agressiva e resoluta, que não presta flanco ao assalto das objecções. Como os maîtres en fait d'armes do século XVII falavam de papo em esgrimidores de espada, também ele fala de cadeira no tocante à esgrima da navalha, que maneja com virtuosidade, pinchando bailheiro, pulando com ginásticas felinas de tigre, fazendo escovinhas, riscando a preceito.
(Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa, fotografia de Ferreira da Cunha, c. 1930, "Fado amador no restaurante Ferro de Engomar, na estrada de Benfica")
Os seus amores são sempre seleccionados entre as rameiras que vigem e viçam na atmosfera microbiana dos bairros infectos, entre essas mulheres que, na virulenta expressão de Balzac, vont en journée la nuit. Lovelace de encruzilhada, D. Juan de podredoiro, ídolo e carrasco das profissionais da galanteria pelintra, o fadista perpetra tão expeditivamente o rufianismo ignominioso como pratica o otelismo trágico. É um Valmont de espelunca, um Saint-Preux do enxurro, para quem a mulher é, simplesmente, a mercenária das trevas, quase um semovente. E ele não a compreende, nem a ama, senão no círculo vicioso dos coquetismos perturbadores e ligeiramente exóticos do canalhismo". (in História do Fado, de Pinto de Carvalho/Tinop, 1903)
(2007)
2 comments:
"e dar um novo cliché cinematográfico à vida de Lisboa." É bastante curioso: isto foi dito em 1903!
Ao contrário da maioria das outras coisas, o cinema chegou a Portugal, praticamente ao mesmo tempo que na Europa e no resto mundo.
Mas é verdade, ainda nem com dez anos de existência, não deixa de surpreender o ar "moderno" da linguagem.
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