VIRAR PÁGINAS
Cristina Branco propôs a edição do seu primeiro álbum de estúdio, Murmúrios, a uma editora portuguesa. Foi recusado. Depois, com ele (após ter optado pela Holanda como rampa de lançamento para a sua carreira), ganhou o prémio do "Le Monde de la Musique" para o melhor álbum de "world music" de 1999. Quando o foi receber a Paris, na presença das Bartollis deste mundo, em vez de se restringir aos proverbiais agradecimentos, pediu para cantar com o companheiro, guitarrista e compositor Custódio Castelo. Valeu-lhe um contrato com a Universal francesa, fruto do instantâneo "coup de foudre" pela sua música de um responsável dessa editora presente na cerímonia. Post Scriptum, de 2000, reincidiu no mesmo prémio. E, com O Descobridor - Cristina Branco canta Slauerhof, atingiu o disco de platina pelas vendas na Holanda, terra natal de Jan Jacob Slauerhoff, o poeta das muitas afinidades com Portugal e a mitologia do fado. É este mesmo álbum que é agora publicado internacionalmente (até aqui, com carreira predominantemente internacional, dela só havia, com edição nacional, o excelente Corpo Iluminado, de 2001, onde, com música de Custódio Castelo, canta David Mourão Ferreira, Sophia de Mello Breyner, Camões, Natália Correia, Pedro Homem de Mello e Pessoa) e apresentado nos palcos portugueses esta semana. É fado e não é. Como ela, que canta fado mas não se vê fadista nem lhe parece que isso importe muito.
Jan Jacob Slauerhoff, um poeta holandês razoavelmente desconhecido em Portugal, não seria a escolha mais evidente para o álbum de uma cantora portuguesa cuja matriz é ainda o fado...
Slauerhoff era um indivíduo completamente inadapatado à sociedade do princípio do século XX. Privou com o Fernando Pessoa e foi tradutor de Camões. Buscava o estímulo de outras culturas que o fizessem sair da sua forma de escrever e sentir que era um bocado depressiva. Acho que acabei por encontrar nele aquela tristeza que toda a gente vê no fado. Era médico de bordo, passou por todas as colónias portuguesas (viveu algum tempo em Macau e apaixonou-se por uma bailarina local de quem teve um filho) e, quando veio a Portugal, encontrava-se muito doente. Fazia uma vida bastante boémia e conheceu muitos lugares e cantores de fado. Um dos poemas deste disco, "Vida Triste", é a tradução dele de uma letra de fado que lhe foi oferecida por um desses boémios com quem se dava. E que, agora, sessenta e tal anos depois, foi resgatada para a língua portuguesa por nós.
Como é que chegaram ao conhecimento da poesia de Slauerhoff?
Estava em digressão pela Holanda e, durante um jantar, conversávamos acerca da literatura portuguesa, de Fernando Pessoa. Nessa altura, alguém mencionou a existência de um poeta holandês que partilhava um pouco desse espírito. Pedi a tradução de um texto dele ("A Uma Princesa Distante" que também acabou por figurar no disco) e, apesar de ser uma tradução à letra, chegou para me aperceber que tinha uma forma de escrever e de pensar muito "portuguesa". A tradutora fez-nos chegar vinte e tal poemas e, desses, cerca de onze, eram perfeitos para construir um álbum.
Nessa escolha, optaram pela maior musicalidade dos textos ou mais por essa implícita afinidade de espírito com os temas do fado?
Não foi fácil. Passou por várias fases. Houve uma primeira tradução muito agarrada ao texto original que era impossível de cantar. Fiz uma segunda tradução, mais livre e cantável e as coisas foram surgindo assim. No final, quando começámos a gravar, percebemos que não seriam exactamente fados mas sim temas muito tristes que acabavam por estar muito proximos do espírito original do fado. E, no fundo, foi através deste álbum que compreendi quais eram realmente as características do fado.
Do ponto de vista estritamente musical, há aqui muitas coisas que saem dos cânones tradicionais do fado...
A própria métrica poética não é regular. E, tanto eu como o Custódio, temos essa tendência para procurar coisas que não se conformem demasiado com as regras. E talvez tenha sido por isso mesmo que o público holandês apreciou tanto este fado que umas vezes o é e outras não. É música, é música portuguesa.
Tem a sensação que o público holandês já conhece suficientemente o idioma do fado a ponto de ser capaz de estabelecer com ele aquele tipo de relação que eles, nós e o resto mundo temos com os blues, o tango ou o flamenco?
Conhece, talvez, às vezes, melhor do que nós próprios. Não estão tão presos àquele tradicionalismo o que os torna mais abertos a descobrir coisas novas no fado e nos cantores do fado. E, depois, houve o efeito-Slauerhof que, também por causa deste disco, voltou a ser lido nas escolas.
Não tendo feito o percurso e os "rituais" obrigatórios que o meio do fado espera de uma fadista, como é que sente que é aceite por esse meio em Portugal?
Nunca fui aceite. Mas já me respeitam. O primeiro disco, Murmúrios, causou um burburinho incrível porque, não cantando fado tradicional, fui buscar coisas do Sérgio Godinho, do José Afonso... tudo coisas que eu cantava para mim, antes sequer de pensar em cantar em público.
De qualquer modo, tanto consigo como no caso do Camané, da Mafalda Arnauth ou da Mísia, cada vez mais se afirma essa tendência para procurar inspiração e reportório fora do território demarcado da tradição fadista ortodoxa...
O fado está na forma como se sente a música. Desde sempre cantei a partir dos discos que havia em minha casa e que eram de blues, jazz e bossa-nova. A minha forma de cantar passa por aí. Não gosto (como eles chamam no fado) de "estilar"...
É curioso que tenha dito "como eles chamam no fado"...
(risos) Eu não pertenço ao meio nem pretendo pertencer. Para mim, cantar fado ou outra coisa qualquer, é contar uma história. Não é preciso passar uma eternidade a ornamentar uma sílaba ou uma palavra para ela soar melhor. Cada palavra tem um significado muito especial e, ao ser incisiva, terá, se calhar, muito mais peso do que fazê-la dispersar no meio da música. Quando canto, sou capaz de ver o texto à minha frente e de pesar as palavras. Nunca estive a ver como é que este ou aquele cantor fazia para poder mimetizá-lo.
Mas, apesar disso, não houve nenhuma das vozes clássicas do fado que a influenciasse?
A Voz, que é a Amália, e uma pessoa que eu amo profundamente na forma de cantar e de estar no fado que é o Camané. O resto, confesso, não me interessa grandemente. Não tenho problema nenhum em dizê-lo, é a verdade. Para mim, o clic do fado foi a Amália. Eu achava o fado uma aberração, aqueles cinquenta fados tradicionais e não se faz mais nada... Quando o meu avô me ofereceu um disco dela, apercebi-me que, se quisermos, o fado pode ser igual ao jazz ou aos blues e podemos fazer o que quisermos dentro daquele estilo. Comprei quase tudo da Amália e dei-me conta de que ela, apesar de ser conhecida como uma grande fadista, tinha muitas coisas que não eram fado.
Após cinco álbuns e, nunca tendo tido essa tal atitude tradicional, tem alguma percepção de qual irá ser o seu rumo musical?
Não é nada estudado, um dia passa sobre o outro, vamos crescendo, e é como se estivesse a ler um livro a que vou virando as páginas. Foi como o que aconteceu com o Slauerhoff: não era suposto fazê-lo mas fiz. Só quando os álbuns estão terminados é que percebo que houve uma evolução. Neste momento estamos já a gravar dois novos álbuns. Um, Nu, é sobre poesia erótica (era para ser só com poesia portuguesa mas já vou cantar Shakespeare traduzido pelo Graça Moura e Vinícius) e outro, quase todo gravado em Angola, sobre poesia em língua portuguesa mas de origem africana com a participação de músicos dos vários países lusófonos.
De tudo o que disse, fico com a ideia que não a incomodaria nada se alguém dissesse que não é fadista...
Absolutamente nada. Não me considero fadista. Ponto. Canto fado. Canto o meu fado. Aquela ideia do xaile, aquele dramatismo não tem nada a ver comigo. Canto a vida, a minha vida. (2000)
26 November 2007
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3 comments:
"Cristina Branco propôs a edição do seu primeiro álbum de estúdio, Murmúrios, a uma editora portuguesa. Foi recusado. Depois, com ele (após ter optado pela Holanda como rampa de lançamento para a sua carreira), ganhou o prémio do "Le Monde de la Musique" para o melhor álbum de "world music" de 1999."
A Oeste nada de novo. Baril, chuchem no dedo enquanto os outros empocham os euricos.
Uma salva de palmas, que se vai cantar Outro fado.
assim talvez já entenda melhor
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