19 June 2018

O MOMENTO ANTES DE DISPARAR A SETA  (I)

À minha frente está o homem que, a meias com um pastor de cabras, alentejano e analfabeto, escreveu a mais extraordinária canção de sempre em língua portuguesa, "A Morte Nunca Existiu". Está registada num álbum de 1972, Margem de Certa Maneira, e, sobre uma melodia enganadoramente simples, contém tudo o que, desde o De Rerum Natura, de Lucrécio, até hoje, foi humanamente possível dizer acerca da vida e da morte: “Tudo o que for vivente tem uma queixa que o percorre e, quando um dia a vida morre, a morte morre também”. Ele, José Mário Branco, o autor da música, recorda António Joaquim Lança, o poeta-filósofo de Peroguarda, como um “velho, alto, esguio, sentado com o cajado, num calhau à beira da estrada, a dizer os poemas dele. De cor”. Mas recorda-se de muito mais do que isso: de quando, ainda adolescente, descobriu as músicas tradicionais do mundo e, no mesmo passo, as vanguardas do século XX; a importância de, algures aí pelo meio, nunca perder a noção de “um chão debaixo dos pés” sem, por isso, dever olhá-lo como propriedade exclusiva; os anos de intenso activismo político vistos pelo ângulo de quem tem a convicção de que “o artista não modifica a sociedade”; a certeza de que a História não chegou ao fim embora, por estes dias, enxergue “o futuro em ruínas”. É, sem dúvida, um bom momento para recordar, agora que, após a reedição, no final do ano passado, de Mudam-se os Tempos, Mudam-se as Vontades (1971), Margem de Certa Maneira (1972), A Mãe (1978), Ser Solidário (1982), A Noite (1985), Correspondências (1990), Ao Vivo em 1977 (gravado no CCB, Coliseu do Porto, Teatro da Trindade e Teatro Gil Vicente) e Resistir É Vencer (2004), publica Inéditos 1967-1999, colecção de 26 peças soltas – para o teatro, cinema, discos de homenagem, singles, EP – nunca antes digitalizadas e/ou sequer registadas em estúdio. 



    Confesso que não estava verdadeiramente à espera que, para todas estas reedições, fosses conceder entrevistas, uma vez que, nestes últimos, largos anos te entregaste deliberadamente a uma espécie de silêncio trapista... 

Pode ter havido um período assim... eu não sou nada social nesse aspecto, não vou aos sítios, não estou presente nos media. 

    Não serias nada social mas eras socialmente bastante interveniente... 

Sim, sim. O mundo está esquisito e observamo-lo, analisamo-lo... nós tivemos um percurso interessante, um percurso em que havia um projecto político. Eu sempre fui absolutamente incapaz de elaborar um projecto político, absolutamente incompetente em política estrita. Mas fui sempre reconhecendo-me em projectos existentes. Agora, como dizia o outro, o futuro está em ruinas. Percebo que o mundo está muito mal mas não compreendo bem a estrutura desse problema. Percebo vagamente coisas até mais culturais do que políticas, mais históricas do que políticas... 

    Mas, em todas as épocas, não existiu sempre alguém que dissesse que o futuro estava em ruínas? 

Possivelmente. Mas o que, para mim, é claro é que esta é uma fase em que se juntam muitos dados novos: a decadência do estado-nação, a globalização de tudo... e isto tem um grande, grande impacto em todas as questões culturais. Paralelamente, existe também a emergência dos nacionalismos... Mas só como sobressaltos de direita. Os nacionalismos actuais identifico-os muito com posições retrógradas de não aceitação do percurso da humanidade... o capitalismo está a conseguir fazer aquela coisa extraordinária com que o Marx sonhava no século XIX: a globalização da luta de classes. 

    Mas não se dá por ela... 

Não, mas a globalização do capitalismo possibilita – e até exige –, a prazo, a globalização da luta de classes. Por isso, não me reconheço nada nas lutas de carácter nacionalista. Politicamente falando. Culturalmente, já é diferente. Não me sinto nada interessado nem envolvido, por exemplo, no independentismo catalão. Não tenho nada a ver com uma coisa em que estão juntos os operários e os patrões catalães, não tenho nenhuma razão para defender aquilo. Isto, apesar de, para mim, a cultura catalã ser muito interessante e muito importante. 

    Agora que a Catalunha pretende separar-se, seria um óptimo momento para Portugal aderir à Federação Ibérica... 

O Oliveira Martins... o iberismo... Mas a federação já é mundial. Olhamos para a estrutura do independentismo catalão e a maior parte é direita requentada. E, depois, há uma esquerda que vai atrás dessas coisas devido ao lastro do passado. Noutra época, poderia fazer algum sentido mas, agora, não faz sentido nenhum. Para não falar de todos os outros movimentos nacionalistas de direita ou até de extrema-direita que há pela Europa fora. 

    É curioso pensar como muito daquilo em que estiveste envolvido no pré e pós-25 de Abril – e que já vinha de trás, dos Lopes-Graça e dos Béla Bartók – aquela ideia de redescobrir, desenterrar, invocar a alma do povo profundo, ir para o campo recolher a música tradicional que falava intensamente das matrizes culturais fundadoras, não seria perigosamente simétrico disto que tens estado a falar? 

Não, acho que era muito diferente. Essa relação com a raiz cultural, com as origens, é extremamente importante para sentir o chão debaixo dos pés. Para sentir uma pertença.  

    Mas, mesmo nessa altura, já era perfeitamente possível apercebermo-nos de quanto esse chão já só sobrevivia numa parte muito recuada da memória das pessoas mais idosas... 

E porquê?... Nós tivemos quase meio século de ditadura cujo trabalho cultural foi reduzir essa riqueza espantosa a meia dúzia de clichés. O que se dá depois de 74 – já, evidentemente, com muito trabalho anterior dos etnomusicólogos – é a exposição, o desenterrar de uma riqueza musical extraordinária que estava enterrada. Como os mamutes enterrados no gelo da Sibéria, descobrimos, de repente, que, num pequeno país, todo feito de micro-regiões, micro-climas, micro-culturas, há uma variedade e uma riqueza musical incrível. A riqueza poética já era mais uniformizada na tradição, esse tipo de poesia não evoluiu, estava muito relacionada com a vivência da religião, do trabalho, do amor, do namoro. Mas, musicalmente, quando eu tinha 16, 17 anos, foi muito importante a minha aprendizagem com o Luís Monteiro, na Escola Parnaso, do Porto. Enquanto etnomusicólogo, ele explicou-nos a relação da música popular tradicional com a vida. Tinha a melhor discoteca etnográfica da Península Ibérica, recebia tudo o que saía da Smithsonian, da Columbia... e tinha conhecimento do trabalho dos etnomusicólogos anteriores ao Giacometti e ao Graça. Um dia chegou à Parnaso e fez-nos ouvir – a mim, ao Jorge Constante Pereira, ao Ricardo Sousa Lima – um disco que todos imaginámos tratar-se de canto alentejano... o ponto, o alto, o coro a responder. Mas não percebíamos a letra. Claro que não podíamos perceber, era da Ucrânia! Era o celeiro da Rússia em vez de ser o celeiro de Portugal. As planícies, o trigo, as searas, o operariado agrícola, trabalhadores pagos à jorna... Ele tinha também um projecto que não sei se chegou a concretizar que era o estudo através da música das grandes migrações, a evolução das famílias linguísticas. Outra coisa importante para a nossa cultura euro-cêntrica, foi ele ter-nos ajudado a distinguir entre o folclore rural e a música erudita, não só na Europa mas no mundo inteiro. O que ele mais gostava eram os gamelãs da Indonésia. E explicava-nos que, tal como as ragas da Índia, era uma forma de música erudita. Mas, para voltarmos ao princípio: é uma riqueza que tem origem aqui mas pertence ao mundo inteiro. Não é propriedade de ninguém, é propriedade de todos! Não é aquela atitude, herdada ainda dos nacionalismos reaccionários do século XX, de “isto é nosso”. Nunca pensei assim, fui sempre muito comparativo, muito integrante em relação ao que havia pelo mundo fora. E é curioso que veio, depois, a inscrever-se aí o livro do José Alberto Sardinha sobre a origem do fado.
  
    Leste-o? 

Li. Provocou aquela bronca com o Rui Vieira Nery mas veio provar por A mais B que existe uma relação muito estreita entre géneros musicais. Não sei se há algum estudo deste tipo sobre o tango e a milonga, na Argentina. Mas têm, de certeza, alguma coisa a ver com o campo, ou melhor, com a migração do campo para a cidade.  

    No caso do fado, segundo a tese do José Sardinha, tendo como agentes disseminadores os músicos cegos mendicantes que circulavam de terra em terra, de feira em feira... 

Música de cordel... Agora, estou a acabar um trabalho de direcção musical com uma fadista e decidimos incluir no disco o fado Mouraria, um dos três fados intemporais que há e que já foi cantado e recantado, estilado por toda a gente. Ela procurou o seu estilo pessoal do Mouraria. E tem um viola com uma maneira de tocar incrível, com um balanço enorme, um lado mesmo tosco, soa a viola artesanal... e tu sabes que o resultado daquilo é uma chula? (risos) É incrível. Eu disse logo: esta faixa do disco vai ser uma demonstração da tese do José Sardinha! A viola é muito percutida e o estilo dela tem muito a ver com as chulas ao desafio do litoral e do Baixo Minho. 

    Vale a pena recordar que o Lopes-Graça detestava visceralmente o fado... 

Ele e eu! Nós fomos formados nessa ideia... 

    Que já vinha também, por exemplo, do Eça de Queiroz que considerava o fado uma coisa abjecta, rasca, do submundo... 

Música lumpen. De certa forma, foi. Mas não foi só isso. Tem a ver, essencialmente, com as migrações internas, com o crescimento das cidades à custa da mão de obra rural. (continua)

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