02 October 2018

A REALIDADE EM COLAPSO


Os Embaixadores (1533) é um quadro a óleo sobre madeira de Hans Holbein, o Jovem, no qual o pintor representou Jean de Dinteville, embaixador do rei de França em Inglaterra (representante do poder temporal), e Georges de Selve, bispo e diplomata (representante do poder espiritual). Ao centro, entre ambos, nas prateleiras em que se apoiam, observamos símbolos de riqueza, poder e conhecimento – um globo terrestre e outro celeste, um relógio de sol, um tratado de aritmética, um alaúde, um quadrante, um estojo de flautas, um livro de hinos luteranos – mas o que sobressai, em primeiro plano, é um estranhíssimo “objecto” oblongo, que parece flutuar sobre o chão. É necessário observá-lo de um determinado ângulo para podermos descobrir que se trata, afinal de uma anamorfose (imagem deliberadamente distorcida) de um crânio humano, um memento mori que apenas pode ser identificado se ignorarmos o resto do quadro, um ruído visual propositado que convida a recordar a morte inevitável para lá da ilusória opulência. 



Double Negative, dos Low, poderá bem ser um supremo exemplo de anamorfose musical: mais do que um imprevisível caso de banda que, ao 12º álbum, decide mudar radicalmente de pele, o que Mimi Parker, Alan Sparhawk e Steve Garrington propõem é um teste de resistência cujo objectivo consiste em desocultar as canções por entre tempestades de electricidade estática, enxergar corais de vozes desencarnadas rasgados por abismos de estridência, reconhecer que, em vez de um exercício sobre a dissonância, o ruído é já a própria canção – uma forma de dar a ouvir aquilo que, de outro modo, não escutaríamos, de reflectir a realidade em colapso como um espelho deformante. Segredam pistas (“The truth is now something that you have not heard”, “Before it falls into total disarray, you’ll have to learn to live a different way”) e, em entrevista à “Wire”, abrem totalmente o jogo: “Montámos este disco peça a peça, ao longo de toda a mudança que ocorreu na América, desde o desastre das eleições até hoje. Muito do que antes se pensava importante parece, agora, tolo e mesquinho. Não temos respostas, esta é apenas uma forma fragmentária de exprimir o que está a acontecer. Como dizer isto? Como saber o que vale a pena? O que é mentira e o que é verdade e residirá aí ainda algum dilema moral?” Talvez em "Dancing and Fire" se encontre uma síntese de tudo isso: “It's more let it out than let it go, it's not the end, it's just the end of hope”.

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