04 September 2018

UM DISCO DO CORPO


Cinco anos depois de One Breath, Anna Calvi publica o terceiro álbum, Hunter. Um quase-manifesto “queer e feminista” acerca do qual afirmou tê-lo desejado “primitivo e belo, vulnerável e forte, o caçador e a presa”, uma arma “tranquilamente audaciosa e provocante” nas políticas de género. Com guitarras incendiárias e a participação de Adrian Utley (Portishead) e Martin P. Casey (Bad Seeds).

    Dos seus dois primeiros álbuns para este Hunter, sinto que existem diferenças mas, por enquanto, não sou capaz de as identificar exactamente. Pode dar-me uma ajuda? 

Pretendi criar algo que fosse mais visceral, animal e selvagem e menos cerebral, textos mais imediatos e muito concentrados na ideia de conduzir até ao extremo o contraste entre as sensações de força e poder e de vulnerabilidade e intimidade. Provavelmente, de uma forma bastante mais deliberada do que, até aqui, tinha feito. 

    Numa entrevista recente, declarou que o que buscava era “a simplicidade, algo que fosse tranquilamente audacioso e tranquilamente provocante”... é isso?

Sim, embora, por vezes, não seja assim tão tranquilo mas mais livre e extrovertido... No entanto, por exemplo, numa canção como "Hunter", essa ideia que referiu aplica-se perfeitamente. Tudo isto, na verdade, já acontecia nos dois álbuns anteriores. Simplesmente, agora, desejei que tudo isso surgisse com uma muito maior definição.

    A sua ideia de encarar cada canção como um mini-filme manteve-se em Hunter ou abdicou dela a favor dessa ambição de tornar tudo mais directo e incisivo? 

Não, não foi por aí, nada disso se alterou. Apenas desejei alcançar a máxima nitidez possível.


     Descreve Hunter como “um álbum queer e feminista” que lhe permitiu “exprimir-se livremente e sem se preocupar com o modo como poderá ser julgada acerca do que deveria fazer com o seu corpo”. Pode dizer-se, então que, no centro deste disco, existe uma agenda de políticas de género?

Não se trata de impôr uma agenda mas de fazer passar a ideia de que não devemos sentir-nos obrigadas a assumir os estereótipos femininos mas sim explorarmos tudo aquilo que uma mulher pode realmente ser em vez daquilo que nos dizem que ela deverá ser. A personagem de "Hunter", por exemplo, procura o prazer sem qualquer espécie de vergonha. A nossa cultura está impregnada de fantasmas de mulheres enquanto objectos de caça dos homens. Quis inverter os papéis: a mulher como caçadora que se apodera da sua presa, masculina ou feminina. Basta de tolerância em relação aos limites que, supostamente, definiriam como uma mulher se deve comportar. Por que motivo haveria de aceitá-los apenas por causa da minha anatomia?...

    Tal como a St. Vincent/Annie Clarke, a Shara Worden (de My Brightest Diamond), a Regina Spektor ou a Julia Holter, a Anna faz parte de um grupo de músicas e "songwriters" contemporâneas que tiveram uma formação musical clássica: estudou violino e guitarra na Universidade de Southampton. Isso teve alguma influência determinante na música que viria a compor e tocar mais tarde?

Aquilo que estudar violino me fez, essencialmente, compreender é que é uma aprendizagem tão tremendamente dura que é indispensável uma dedicação total para que o resultado valha verdadeiramente a pena.

    Mas, para além disso, contribuiu, de alguma forma para lhe proporcionar algum tipo de modelos musicais? 

Não. Quando escrevo canções, nunca o faço de um ponto de vista racional ou teórico. É um processo puramente emocional. E, muito particularmente neste álbum, quis afastar-me por completo de uma atitude demasiado pensada: é muito mais um disco do corpo do que da cabeça.


    Pode dizer-se que se esforçou deliberadamente por esquecer o que aprendeu na universidade? 

Não foi um esforço deliberado. Mas o mais importante que guardei da minha passagem pela escola de música foi apenas a possibilidade de escutar tanta música diferente e a que, de outra forma, se calhar nunca poderia ter tido acesso. 

    No início, antes do seu primeiro álbum (2011), apareceu mais ou menos incluída naquilo que ficou conhecido como a cena "nu-folk" londrina da altura. Gravou com Johnny Flynn e com os Mumford & Sons e teve uma banda, Cheap Hotel. Foram passos importantes?

Se quer que lhe diga, são coisas em que, agora, nunca penso. Na altura, claro que foram experiências importantes através das quais aprendi uma série de coisas. Mas, depois, segui em frente e, nesta altura, não são muito mais do que memórias vagas. 

    Há quatro anos, quando co-escreveu uma canção – "Falling Back" – com Marianne Faithful para o álbum dela Give My Love To London, confessou que, sendo o processo de composição para si, uma coisa tão íntima e privada, nunca supôs que, desse encontro com ela em Paris, pudesse surgir alguma coisa... mas, em 20 minutos tinham a canção concluída! 

É verdade, procuro sempre o máximo de solidão e de privacidade quando componho. Por isso, fiquei absolutamente espantada com o à vontade que a Marianne demonstrou para escrever uma canção na companhia de uma pessoa que não conhecia de lado nenhum e ser capaz de confiar nela. É, na verdade, uma mulher incrível. 


    Nick Cave e Brian Eno cobriram-na de elogios quando publicou o primeiro álbum, tendo Eno afirmado que era o acontecimento musical mais importante desde o aparecimento de Patti Smith. Esse tipo de comparações é-lhe desconfortável?

Suponho que o Brian Eno estava apenas a exprimir a sua admiração pelo meu trabalho e estou-lhe grata por isso. Quando se compara um artista com outro, penso que isso, realmente, não é importante, não o afecta. Compreendo que, por vezes, é necessário utilizar palavras e associações de ideias como referências para descrever uma música a quem ainda não a escutou . Não me incomoda nada.

    A participação de Adrian Utley (Portishead) e Martin P. Casey (Bad Seeds) neste álbum obedeceu a algum objectivo especial? 

Foi uma resposta a necessidades específicas e a aspectos particulares que me interessavam. Por exemplo, não desejava que se escutassem demasiados instrumentos de cordas reais. Os sintetizadores sempre me soaram como instrumentos orquestrais e acho que o que o Adrian consegue realizar com eles é muito interessante e exactamente aquilo que fazia falta às músicas. Desta vez, também precisava de um baixista e foi o Nick Launay (o produtor) que sugeriu o Martin que é um músico extraordinário. 

    Enquanto guitarrista, quem foram os seus modelos? 

Sempre tive a maior admiração por Jimi Hendrix desde que vi e ouvi os registos dele no festival de Woodstock. Foi uma inspiração e um modelo que nunca mais me saiu da cabeça e a que, de uma forma ou de outra, acabo sempre por regressar. 

    Trocou o violino pela guitarra e nunca mais voltou a pegar nele como instrumento solista... 

Não, ainda o toquei em alguns arranjos do primeiro álbum mas, como solista, nunca mais lhe peguei. É preciso estudar e praticar sem interrupções e, uma vez que se pare, é muito difícil recuperar o que, entretanto, se perdeu. 

    Um dos meus grandes sonhos seria poder vê-la, em concerto e/ou em disco, juntamente com a St. Vincent, outra fabulosa guitarrista actual... Há alguma hipótese?...

(risos) Nunca se sabe... tudo pode acontecer, embora não haja planos, de momento. Conheço a Annie, é uma óptima pessoa e uma música excelente... logo se verá. 

    Vou, então, interpretar isso como uma promessa... 

(risos)

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