17 January 2011

ARQUIPÉLAGO DE EMOÇÕES



Anna Calvi - Anna Calvi

Poderia duvidar-se da pureza das intenções do Príapo, Brian Eno – justamente famoso, enquanto jovem, pelas suas lendárias e confessadas maratonas sexuais de 36 horas "non-stop" –, quando, publicamente, declarou ser o surgimento de Anna Calvi o acontecimento musical “mais importante desde Patti Smith” e, posteriormente, lhe enviou uma carta em que afirmava que a música dela era repleta “de inteligência, romance e paixão... que mais podemos exigir da arte?”. Embora, hoje, um respeitável cavalheiro Lib-Dem de 63 anos, teríamos de compreender o turbilhão hormonal do insigne teorizador-pop perante a encandeadora visão da diminuta ítalo-britânica de lábios escarlate, olhos de lobo, salto alto e flamejantes "chemises" vermelhas ou de renda negra, brandindo uma Telecaster. De igual modo, os louvores sobre ela derramados por Nick Cave pareceriam, eventualmente, suspeitos ao darmo-nos conta de que, por mais de uma vez, Calvi foi associada a PJ Harvey (e escolheu até como produtor Rob Ellis), e, em particular, se nos recordarmos da preferência de Cave pelos pequenos formatos do tipo-Kylie Minogue.



Mas, não descartando a indiscutível importância desses factores de avaliação, todas as reticências se extinguem instantaneamente no momento em que começamos a escutar o álbum de estreia de Anna Calvi e somos, literalmente, fulminados por aquela voz algures entre o gótico-Siouxsie Sioux, o épico-Grace Slick e o operático-Alison Goldfrapp (a do primeiro Felt Mountain). E, sim, sem dúvida, os espectros de Patti Smith (o galope vertiginoso de "Desire") e de Polly Jean ("I’ll Be Your Man" em registo To Bring You My Love) pairam. Ela própria insiste em referir Maria Callas, Nina Simone, Scott Walker, Edith Piaf e David Bowie e, do ponto de vista da composição e da execução na guitarra, um eclético leque que começa a abrir-se em Robert Johnson, Captain Beefheart e Jimi Hendrix e alcança Dr. John, Ravel, Debussy e Messiaen.



Inicialmente identificada pelos radares que captavam sinais da cena "nu-folk" londrina (colaborou com Johnny Flynn e gente dos Mumford & Sons), na verdade, embora ainda razoavelmente distante, o parentesco mais legítimo será com as também moças-de-conservatório, Shara Worden/My Brightest Diamond e St. Vincent, por via de alguma dimensão orquestral que, aqui e ali, Anna Calvi cultiva. Porque, em todo o resto que importa, esta música, arquipélago de emoções intensas encenadas em amplo espaço aberto – essencialmente, ela, na guitarra e voz, Mally Harpaz, em múltiplas percussões e harmonium, e Daniel Maiden-Wood, bateria –, incorpora muito do que se poderia imaginar ser uma variação de Morricone sobre o flamenco (tal como o delta do Mississippi o viu nascer), escrita para um argumento de Robert Rodriguez, com cenografia de David Lynch e realizado por Wong Kar Wei. Sim, exactamente isso: o cálculo de reagentes, catalisadores, inibidores e velocidades de reacção foi rigorosamente calibrado e, naquilo que Calvi descreve como “mini-filmes que nos conduzem para outro lugar e nos comovem, quer isso signifique fazer-nos pensar em sexo ou sentir vontade de chorar”, geram-se assombrosos unicórnios sonoros, relâmpagos de guitarra arrepiantemente carnais e árias empolgadas para oratórios interpretados em fundo de cetim vermelho-bordel. Brian e Nick, como foi possível termos duvidado de vós?...

(2011)

8 comments:

aaa said...

Grande texto!
lá vou ter que ir procurar esses "assombrosos unicórnios sonoros" :)

RL said...

Já ouvi várias vezes o disco e... estou entusiasmado!!

João Lisboa said...

:)

RL said...

Isto não se faz!!... Vou ter que ficar acordado até a Vanessa se decidir a acabar o filme:

http://vimeo.com/10065055

Boa noite. Retiro-me para comprar café.

Anonymous said...

Quem é que disse que um gajo não pode ter orgasmos múltiplos?

Rui Gonçalves said...

Posso estar a delirar, mas o Jeff Buckley - mais a guitarra, não tanto a voz - também passa por aqui. Enfim, a riqueza estética é tanta que são permitidas variadíssimas leituras...

Rui Gonçalves said...

Posso estar a delirar, mas o Jeff Buckley - mais a guitarra, não tanto a voz - também passa por aqui. Enfim, a riqueza estética é tanta que são permitidas variadíssimas leituras...

João Lisboa said...

Sim, sim...