18 November 2015

PAPEL DE PAREDE


A história da muito pouco recomendável promiscuidade entre música “clássica”/erudita e rock é um arrepiante desfile de horrores. Se, numa modalidade de acrobática performance circence, o esventramento de "America", de Leonard Bernstein, às mãos de Keith Emerson, com os Nice  possuía, ainda, alguma candura kitsch – podemos vê-lo, a preto e branco, num programa de televisão britânico, de 1968, com punhais cravados no teclado do Hammond e tudo –, o que veio a seguir (e coloco a questão com a máxima gentileza) é um pomposo equivalente sonoro do cast de Freaks, de Tod Browning: integrando a mesma associação de delinquentes e, posteriormente, a bordo dos Emerson, Lake & Palmer, o rasto de vítimas inocentes degoladas não apenas se ampliou dramaticamente, de Bach a Copland, Sibelius, Janácek, Ravel, Prokofiev, Tchaikovsky, Ginastera, Bartók e Mussorgsky, como escancarou as portas a uma invasão bárbara obcecada em coleccionar os escalpes de Katchaturian (Love Sculpture e “Sabre Dance”), Albinoni (Doors e “Adagio”), Debussy (Renaissance e “La Cathédrale Engloutie”), Vivaldi (Curved Air e “As Quatro Estações”), Brahms (Yes em "Cans and Brahms"), Beethoven (Jethro Tull no massacre da “9ª”) e uma infinidade de outros estropiados – por vezes, até voluntariamente, caso de Pierre Henry que, em Ceremony, se entregou aos desmandos dos Spooky Tooth – pela horda do rock-sinfónico-progressivo, agremiação de modestos calceteiros sonhando com a arquitectura de catedrais.



Nicolas Godin, metade (com Jean-Benoît Dunkel) do duo francês Air, foi também acometido pela síndrome da angústia do artista pop perante a eternidade e, em Contrepoint, imaginou ter descoberto uma bóia de salvação na música de Bach tal como Glenn Gould a interpretou. Embora a via de acesso tenha sido mais próxima daquela por que Gainsbourg optou em "Jane B." e "Lemon Incest" – socorrer-se de prelúdios e "études" de Chopin e limitar-se a utilizar as melodias – a verdade é que o que daí resultou foi pouco mais do que inócuo papel de parede amavelmente decorativo destinado a salões de chá "trendy". Para algo um bocadinho mais a sério, escutar as Variações Goldberg relidas por Uri Caine (2000) e, já agora, as suas abordagens de Mahler, Wagner, Schumann e Mozart.

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