03 October 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XVI)



"Quando era puto, costumava dedicar-me a um jogo mortal em que nos deitávamos no deserto, cobertos de areia até ao pescoço, e esperávamos que os abutres aparecessem. Um por um, eles iam surgindo, a voar em círculos por cima das nossas cabeças. Então, o mais corajoso poisava e caminhava lentamente em direcção aos nossos olhos, de tal maneira que podíamos sentir o cheiro a carne podre e ouvir o grasnido rouco e áspero. Só quando conseguíamos sentir o vento que as asas deles faziam e lhes víamos os pescoços em forma de ponto de interrogação é que saltávamos da areia aos gritos, os agarrávamos pelo pescoço e os fazíamos rodopiar por cima da cabeça como laços negros de cowboy.

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"Querem ficção científica? Não vão mais longe. Reparem na lampreia do Pacífico. Os dentes que possui situam-se na língua. Comem os peixes de dentro para fora. Introduzem-se dentro deles e deixam apenas um saco de pele e espinhas. Vivem na costa do México. Não têm estômago, apenas um tubo digestivo, mas têm quatro corações, um dos quais junto à cauda. Comem entusiasticamente mas têm um metabolismo tão baixo que podem passar meses em cativeiro sem comer. São muito apreciadas em churrasco em certas partes da Ásia e a pele é usada para fazer carteiras, chapéus, sapatos e malas. Não possuem espinhas rígidas. Também não têm mandíbulas nem olhos mas apenas manchas fotossensíveis à volta da cabeça. É possível que a lampreia tenha sido a inspiração para o 'photonclarinet' inventado pelo construtor de instrumentos de Cincinnati, Qubias Reed Ghazala, um sintetizador que modula a frequência e o volume dos sons através de dois dispositivos fotossensíveis e que possibilita uma enorme variedade de microintervalos. Isto permite ao músico, a partir de um raio de luz, criar música que soa como uma lagosta num fogo de campo.

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"Um grupo de cientistas acabou de aperfeiçoar um método de transplante das memórias de abelhas adultas para embriões de abelha. Pouco depois de nascerem, as abelhas que receberam o transplante foram capazes de descobrir o caminho de regresso às colmeias das abelhas dadoras. Steven Ray, que dedicou cinco anos a esta investigação, revelou que a CIA está a realizar a mesma experiência em seres humanos e planeia usar esta descoberta em acções de espionagem. Segundo parece, a única coisa que não permanece intactacta durante os transplantes é a memória das canções. Esse será, aliás, o tema de um filme em que estou a colaborar com o Jim Jarmusch e que se chamará They All Died Singing.

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"Os meus putos já começaram a reparar que eu sou um bocadinho diferente dos outros pais. 'Porque é que não tens um emprego normal, como toda a gente?', perguntaram-me no outro dia. Então, contei-lhes esta história: na floresta havia uma árvore toda retorcida e uma árvore direita. Todos os dias, a árvore direita virava-se para a árvore retorcida e dizia-lhe 'Olha para mim, sou alta, direita e bonita. Olha para ti, toda torta e retorcida. Ninguém te quer ver'. E continuaram a crescer juntas na floresta. Um dia, os lenhadores chegaram, viram a árvore direita e a árvore retorcida e disseram 'Cortem só as árvores direitas e deixem as outras'. E transformaram todas as árvores direitas em lenha, palitos e papel. A árvore retorcida lá continua, cada dia mais forte e mais esquisita.

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"Uma vez, comprei coca a um tipo num apartamento mesmo rasca, em Miami. Tinha uma ferida de um tiro no peito e sangrava através da ligadura. Contámos o dinheiro em cima de uma mesa de vidro e ele não parava de se agarrar ao ombro. Foi uma noite de terror. E a luz naquela casa, nem vos conto nada, parecia uma piscina à noite. Alguém me tinha dado aquele número de telefone depois de um concerto. Foi mesmo uma cena de gangsters. Com a arma em cima da mesa e tudo.

1993

(2007)

2 comments:

Anonymous said...

Gostei das árvores.
Sempre querem nos fazer direitas.
Mas as retorcidas são mais interessantes.

Menphis said...

Tom Waits, um excelente contador de histórias.