ESCONJUROS E ENCANTAMENTOS
PJ Harvey - Is This Desire?
Quando, em 1993, foi publicado Rid Of Me (o segundo álbum de PJ Harvey), intitulei o texto que sobre ele escrevi "Teatro do Desejo". Dois anos depois, ao vê-la no palco do Sheperd's Bush Empire de Londres, por altura da edição de To Bring You My Love, acentuou-se claramente essa ideia da existência de uma fortíssima dimensão teatral que atravessava irremediavelmente as canções e a forma como (tanto em disco como ao vivo) ela as encenava. Um ano mais tarde, por ocasião da exibição do programa September Songs -"sequela" de Lost In The Stars, ambos produzidos por Hal Willner e dedicados à música de Kurt Weill -, mais do que uma soberba interpretação vocal, a prestação de Polly Jean para a "Ballad Of The Soldier's Wife" pareceu-me uma extraordinária composição de uma personagem, um magnífico e exemplar trabalho de actriz.
Porém, agora que ela se transformou literalmente em actriz (desempenhou o papel de Maria Madalena no último filme de Hal Hartley, The Book Of Life, para o qual, aliás, também compôs), foi o momento que lhe pareceu apropriado para, como afirmou em entrevista à revista "Dazed & Confused", abandonar definitivamente o jogo de máscaras e revelar a sua verdadeira personalidade: "Na última digressão, usava muita maquilhagem, um enorme guarda-roupa, era tudo muito teatral...Tratava-se, na realidade, de uma máscara que eu usava. Nessa altura, pessoalmente, sentia-me muito perdida, não tinha uma clara noção de quem era. Agora, no entanto, três anos depois, tenho de reconhecer que mudei muito. Faça o que fizer, esteja em palco ou a fazer as compras, sou a mesma pessoa. Dantes, interessava-me muito jogar com a imagem, Agora, abandonei tudo isso. Experimentei fazê-lo mas não resulta bem comigo, não sinto que seja uma coisa genuína". Pois bem, escutado o seu último álbum, Is This Desire?, a verdade é que Polly Jean não largou realmente a sua genuína (é a palavra) pele de actriz. Tê-la-à substituido simplesmente por uma outra em registo naturalista. O que não é senão mais uma forma de continuar a ser teatral.
Numa página da Internet, um fã perspicaz definia-a como "uma feiticeira medieval que esconjura a música através de encantamentos. Ela tanto invoca as tempestades como se apresenta enquanto prisioneira da paixão". E é, de facto, isso que, ao longo de todos os seus álbuns (este não é excepção), ela tem realizado. Ironicamente, em Is This Desire?, esse aparente esforço de "sinceridade" (mas pode-se realmente acreditar nisso quando alguém chamado Polly Jean abre um álbum enunciando as palavras "My first name's Angeline"?) é traduzido através da criação de um elenco de heterónimos femininos - Elise, Catherine, Leah, Angeline - que, num cenário quase bíblico (mais uma vez, bem proximo dos de Nick Cave), se defrontam com a fúria dos elementos naturais convertida em metáfora para a tempestade das emoções. O céu ilumina-se, o vento uiva, os mares enfurecem-se e toda essa convulsão só é apaziguada pelo mergulho purificador nas águas de um rio, único meio de atenuar o ciúme patológico segregado por uma canção como "Catherine".
A matéria musical é, evidentemente, cenário, adereço, que, do trip hop soturno e descarnado, ao rock histérico, ao gospel mutante, ou ao "ambient" psicótico, são meros dispositivos dramatúrgicos destinados a realçar o desempenho da diva cantora/actriz Polly Jean Harvey, em doze dos mais conseguidos papéis da sua ainda curta carreira. (1998)
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