29 April 2007

VELHO E JOVEM MESTRES


Burt Bacharach é o compositor favorito de Brian Wilson. Frank Zappa elogiou-o publicamente pela invulgar sofisticação musical que as suas canções introduziram nas tabelas de vendas de discos de todo o mundo. Ira Gershwin autografou-lhe uma partitura com a dedicatória "Para Burt, o 5º 'B': Beethoven, Brahms, Berlin, Bach e Bacharach". John Zorn por pouco não chegou a vias de facto com um proeminente crítico de jazz que se atreveu a pôr reticências à ideia de um músico da vanguarda "downtown" de Nova Iorque abordar a música do autor de "I Say A Little Prayer". Marlene Dietrich — para quem, entre 58 e 61, Bacharach trabalhou como director musical —, apresentava-o como "meu acompanhador, meu arranjador e, desejaria poder dizê-lo, meu compositor, mas, infelizmente, não é verdade. Ele é o compositor de todos os cantores". Sammy Cahn descreveu-o como "o único escritor de canções do Brill Building que não se parecia com um dentista".



E, dos Oasis a Aretha Franklin, Tony Bennett, Dionne Warwick, Massive Attack, Dusty Springfield, Fred Frith, Pizzicato Five, Sandie Shaw, Stereolab, Walker Brothers, Bill Frisell, R.E.M., Shirelles, Eric Matthews, Frank Sinatra, Erasure, Drifters, Combustible Edison ou Ani Di Franco, todos o reclamam como um dos seus ou, no mínimo, já interpretaram uma canção assinada por ele.
Não admira, por isso, que Elvis Costello — o "príncipe do punk" — tenha visto com muito bons olhos a ideia de se lhe juntar para a composição, a quatro mãos, de um álbum inteiro de canções, Painted From Memory. Stan Getz, McCoy Tyner ou Zorn já lhe haviam dedicado álbuns inteiros de homenagem e, ele, Bacharach, discípulo de Darius Milhaud (que lhe ensinou a nunca ter receio de uma boa melodia), Martinu e Henry Cowell, fanático confesso de Charlie Parker, Thelonious Monk, Dizzy Gillespie, Debussy e Ravel, aos setenta anos, era, de novo, indiscutivelmente "cool".


Austin Powers

No filme Austin Powers, aparecera como ícone da sofisticação urbana, as suas canções, em O Casamento do Meu Melhor Amigo, eram tão importantes como os diálogos que Julia Roberts ou Rupert Everett interpretavam, em Doidos Por Mary, o tema "Close To You" desencadeara uma tragicomédia e, para um iconoclasta mas devoto dos clássicos como Costello, a tentação era demasiado grande. O disco contém algumas das melhores canções que qualquer dos dois alguma vez escreveu e, há duas semanas, ambos juntaram-se em Londres para uma conferência de imprensa e uma apresentação no Royal Festival Hall que, por agora, encerrou aquilo que eles, de bom humor, designaram como a sua "extensa digressão mundial de cinco concertos". Com três Óscares, quatro Grammies e um currículo de canções que o planeta inteiro assobia ("What The World Needs Now Is Love", "Walk On By", "Close To You", "The Look Of Love", "Raindrops Keep Falling On My Head", "I'll Never Fall In Love Again", "What's New Pussycat?", "This Guy's In Love With You", "Anyone Who Had A Heart" e, literalmente, dezenas de outras), Burt Bacharach desempenhou o papel de descontraído e experiente mestre de cerimónias enquanto Costello foi o discípulo visivelmente excitado pela proximidade da ilustre companhia.


Ambos contaram, então, como se juntaram para, via telefone e fax, comporem a meias uma canção para o filme Grace Of My Heart ("Tínhamos quatro ou cinco dias para escrever e gravar "God Give Me Strength" entre Dublin e Los Angeles. Nem tivemos tempo para nos preocupar com a ideia de se tudo iria acabar bem ou mal. E saiu muito bem. A princípio, não possuíamos sequer a noção da duração total da música. Quando reparámos que tinha seis minutos, ficámos de boca aberta!") e a forma como, a partir desse início, o conhecimento e a amizade entre os dois se estabeleceu: "Ele — diz Bacharach — conhecia melhor a minha música do que eu a dele. A verdade é que, em relação aos primeiros discos dele (ainda muito influenciados pela insolência punk) não prestei muita atenção... Eu fazia outro tipo de coisas e ouvia mais a música negra urbana de Detroit, Memphis e Filadélfia. O rock parecia-me demasiado simplista. Por isso, se calhar erradamente, não fui reparando nas incursões que ele fazia pela country, pelo jazz ou com o Brodsky Quartet. É, de facto, um aventureiro!".


Elvis Costello - "All This Useless Beauty" (Burt Bacharach's request)

Costello, pelo seu lado, confessa que, embora tenha encontrado em Bacharach alguém capaz de, como ele, ficar absolutamente obcecado pelo trabalho, "nos intervalos, conversávamos muito e, naturalmente, acabámos por ficar amigos. As únicas vezes em que, durante as gravações, parámos, foi para ver as transmissões do Campeonato do Mundo de futebol e, no caso dele, que é um fanático por cavalos, do Kentucky Derby". Mas, acrescenta, "nunca senti que existisse entre nós uma diferença de idades, nunca houve uma relação entre o mais velho e o mais novo. Estabelecemos uma relação de trabalho entre o mestre e o mestre mais jovem sendo ele, evidentemente, o mestre mais jovem!"
Depois, inevitavelmente, vem à conversa o facto de Noel Gallagher, dos Oasis (que colocaram uma imagem de Bacharach na capa do seu primeiro álbum), ter subido ao palco durante um concerto de Burt, em Londres, para interpretar "This Guy's In Love With You" mas este, ainda que reconheça que a experiência "foi divertida" e que "gosta que gostem dele", garante que não se vê "a fazer com ele o mesmo que com Elvis Costello". E, pouco antes de partir apressadamente para quatro horas de ensaio com uma secção de cordas que nunca antes vira as partituras que deveria executar nessa mesma noite, o suposto imperador coroado do "easy listening" não se vai sem primeiro oferecer o seu ponto de vista acerca desse título: "Nunca pensei que a minha música fosse assim tão fácil de escutar. Mas, se as pessoas sentem a necessidade de lhe colocar essa etiqueta, isso também não deixa de constituir um reconhecimento".



"In The Darkest Place" (álbum integral aqui) 

À noite, no palco da sala da Southbank, ficaria bem visível o grau de cumplicidade que Costello e Bacharach atingiram. Num espectáculo milimetricamente planificado, houve espaços comuns para a totalidade das canções de Painted From Memory, lugar para "medleys" de temas de Bacharach sozinho com orquestra e côro, e oportunidade para Elvis (com o ex-Attractions, Steve Nieve, incorporado no "ensemble") rever temas do seu reportório pessoal e oferecer a sua versão daquelas peças do mestre — "desta vez, com os acordes correctos...", como ironicamente observou — que particularmente venera. Todas interpretadas com o mais absoluto rigor (conseguido, quem adivinharia, no ensaio de uma tarde) a sublinhar a extraordinária elegância, subtileza e sofisticação dos arranjos de Bacharach. A Costello ficaram entregues as apresentações das canções de "love gone right and then gone wrong" dedicadas ao "clube dos sedutores melancólicos", a explicação dos assuntos mais difíceis ("Esta canção, 'The Long Division', trata de um tema terrívelmente adulto para que os franceses possuem uma expressão com que não vos irei incomodar" foi a forma que ele encontrou para não dizer "ménage à trois") e o reconhecimento público da invulgaridade de tocar guitarra eléctrica envergando um "smoking". A ocasião, de facto, era solene. Burt Bacharach, esse, estava de fato azul claro e camisa de colarinho desabotoado, sem gravata. (1998)

28 April 2007

DANCING WITH THE NIGGER

                 Jackie Brown                         

Em entrevista à "Les Inrockuptibles", Quentin Tarantino foi colocado perante as seguintes observações:"Fala-se muito acerca da sua utilização erudita e hábil da música. Mas a verdadeira música dos seus filmes não serão os diálogos? Apetece dizer que a sua associação com Samuel Jackson é comparável à que existe entre um autor de canções e um cantor. Não será você para Samuel Jackson o que Norman Whitfield era para Marvin Gaye?". As quais, em resposta, Tarantino não apenas considerou como "uma excelente analogia" como aproveitou para contar que, quando uma vez ele próprio dissera a Jackson que ninguém interpretava como ele a musicalidade dos seus diálogos, este lhe respondera "Quentin, ninguém escreve melhores músicas do que tu..."


Na verdade, a importância da música (em sentido lato e restrito) nos filmes de Tarantino excede largamente a mera dimensão convencional de "banda sonora" e assume tanto o papel de "côro" - no sentido de que isso se revestia no teatro clássico grego - como o de quase personagem-fantasma de parte inteira. Em qualquer dos casos, muito mais do que simples adereço ou dispositivo cenográfico tradicional. Um pouco, talvez, como confessava Michael Nyman em relação ao que se passava na relação entre a sua música e os filmes de Peter Greenaway, onde ela desempenhava o papel de "princípio organizador e fonte de energia emocional e expressiva, o motor que acciona um mecanismo laborioso, como uma injecção de adrenalina ou uma droga excitante". E (Tarantino já o referiu em inúmeras ocasiões), para ele, a música está longe de constituir uma preocupação de última hora mas sim um elemento fundamental para o desenvolvimento dos filmes que diz "escutar enquanto escreve os argumentos".

A demonstração de tudo isto está, evidentemente, nos próprios filmes. A crucial cena de Reservoir Dogs ao som de "Stuck In The Middle With You", observada sem o indispensável complemento musical dos Steelers Wheel, não possuiria um décimo da sua crueldade, exactamente do mesmo modo que as cenas de interiores com John Travolta/Vincent Vega e Uma Thurman/Mia Wallace em Pulp Fiction são inteiramente devedoras do contraponto sonoro oferecido por "Son Of A Preacher Man", de Dusty Springfield, e "Girl You'll Be A Woman Soon", pelos Urge Overkill.


Pulp Fiction

Tarantino é, aliás, o primeiro realizador da história do cinema a ter conquistado (apenas em dois filmes) o indiscutível estatuto de ícone pop. Ou, no inconfundível idioma de uma revista como o "New Musical Express", a ter ascendido à condição de "media-blitzing-movie-geek-self-appointed-Orson-Welles-of-the-post-MTV-generation", inventor da "brain-blasting-speedfreak-designer-violence-and-post-everything-smart-arse-slam-bang-movie-buffery-piggery-jokery", por outras palavras, a ter-se transformado numa espécie de "Woody Allen on crack". Ao ponto de se lhe ter tornado necessário fundar uma empresa de "publishing" (tal como a sua produtora cinematográfica com Lawrence Bender, usando o nome de A Band Apart) para lidar com os problemas de "copyright" provocados pela utilização abusiva de "samples" dos diálogos dos seus filmes em múltiplos temas musicais (nomeadamente de hip-hop) e de se ter visto obrigado a recusar o mais diplomaticamente que lhe foi possível uma canção que Kurt Cobain lhe suplicava que incluisse em Pulp Fiction.

Em Jackie Brown, tudo isto reaparece sob as mais diversas formas. Num filme que, de algum modo, remete para o imaginário das "blaxploitation movies" dos anos 70, todo o meticuloso trabalho de Tarantino se centrou na recuperação do património musical popular negro da época. A abrir e a encerrar emblematicamente (e, de certa maneira, a estabelecer todo o "mood" narrativo), lá está "Across 110th Street" interpretado por Bobby Womack e retirado do clássico "blaxploitation" do mesmo nome. Mas, igualmente, aí figuram outros títulos obrigatórios do género como "Long Time Woman" (um daqueles jogos de referências cruzadas que Tarantino tanto aprecia quando se descobre que já era originalmente cantado pela própria Pam Grier em Bill Doll House), "Street Life", de Randy Crawford (extraido de Sharkey's Machine), "Baby Love", das Supremes (a dar a voz a uma deliciosa composição sem palavras de Robert De Niro e Hattie Winston), "Inside My Love", por Minnie Riperton, ou "Natural High", pelos Bloodstone. Todos como elemento "dramatúrgico" indispensável que, desde o início de cada sequência, anunciam os traços gerais do que se lhe seguirá ou, como no caso do "Philly soul" de "Didn't I Blow Your Mind This Time", dos Delfonics (ouvido em agulha de safira sobre vinil negro), que instala verdadeiramente a cumplicidade na relação entre Pam Grier/Jackie Brown e Robert Forster/Max Cherry.
 
 
 
Jackie Brown
 
E, naturalmente, na própria musicalidade dos diálogos (mais trabalhados e extensos do que nunca) que Quentin Tarantino, quando interpelado de um ponto de vista "politicamente correcto" acerca da utilização obsessiva da palavra "nigger" por Samuel Jackson, não só justificou como óbvia necessidade de caracterização daquela personagem (acrescentando: "life's a little too short to worry about shit like that!") como voltou, uma vez mais, a explicar: "Adoro a dança da linguagem, fazer swingar as palavras. E, neste filme, dança-se até perder o fôlego com a palavra 'nigger'". (1998)

26 April 2007

ENCONTROS FORTUITOS


(os primeiros 3'37" são em silêncio)

The Cinematic Orchestra/Dziga Vertov - The Man With A Movie Camera

Em Unheard Melodies - Narrative Film Music — o incontornável clássico de Claudia Gorbman acerca das relações entre imagem e música no cinema —, logo no primeiro capítulo, é colocada uma interrogação crucial: "Não será qualquer música suficiente para acompanhar um determinado segmento de filme? De facto, a resposta é sim. Seja qual for a música que se aplique a um segmento de filme, ela produzirá um efeito sobre ele, tal como quaisquer duas palavras que se juntem produzirão um sentido diferente do que cada uma possuia separadamente pois o leitor/espectador automaticamente impõe um sentido a tais combinações".



E, após recordar o jogo dos "encontros fortuitos" da estética surrealista, exemplifica com a forma como Jean Cocteau sonorizou alguns dos seus filmes segundo o princípio da "sincronização acidental": "pegava na música de George Auric cuidadosamente escrita para cenas específicas do filme e, deliberadamente, aplicava a música errada às cenas erradas".



Emancipada assim a questão do aparente "sentido único" que uma determinada sobreposição de imagens e sons haveria de fazer para todo o sempre — nenhumas imagens nasceram para se articularem inevitavelmente com estes ou aqueles sons —, não só se abre um infinito universo de possibilidades de estética combinatória como a prática crescente de sonorização contemporânea de filmes clássicos ou da época do "mudo" ganha uma legitimidade acrescida, independente de quaisquer considerações de ordem historicista ou autenticista.



Poderão resultar desastradamente mal (como as partituras em piloto automático de Philip Glass para Dracula ou La Belle Et La Bête) mas também podem sair-se assombrosamente bem como é agora o caso de The Man With The Movie Camera (1929), de Dziga Vertov, que, a convite do "Porto-2001", a Cinematic Orchestra reencenou musicalmente.



Se o filme se apresentava como "um trabalho experimental que pretende criar uma verdadeira e absoluta linguagem internacional do cinema baseada na total separação das linguagens da literatura e do teatro" e, ao fazê-lo, não só escancarou as portas de toda a modernidade cinematográfica posterior enquanto arte suprema da montagem como inaugurou o género do "kino pravda/cinema verité", a banda sonora de Jason Swinscoe e cúmplices optou inteligentemente por não se limitar a mimetizar a dinâmica das imagens mas apreender-lhes sim a matriz mais profunda.



O que no ecrã era uma fabulosa investigação acerca da realidade — um dia na vida da paisagem humana de Moscovo — como exercício radicalmente subjectivo de construção por "assemblage" errática e aleatória do olho humano ou do "kino glaz" (o olho do cinema) e não como mero efeito de reprodução mecanicamente "realista", a Cinematic Orchestra traduz isso para o espaço sonoro em dois planos: horizontalmente, de modo cíclicamente repetitivo, assegurando a continuidade narrativa assente numa estabilidade harmónica e rítmica; verticalmente, através da acumulação de factores de surpresa melódica, momentos de improvisação e rotura, explosões de percussão e estridência tímbrica.



Não existe uma verdade única do "real", a verdade do cinema é só mais uma possibilidade de interpretação e, no limite, de edificação de um mundo, explicava Vertov neste filme. A Cinematic Orchestra acrescenta: a modernidade de Vertov, Léger, Stella, Joris Ivens, Álvaro de Campos ou Dos Passos é tão verdadeira e urgente como a de uma música acabada de compôr para dialogar no idioma contemporâneo com um filme rodado há quase um século. (2003)

25 April 2007

CORAÇÃO INDEPENDENTE



Vários (BSO) - Lulu On The Bridge

A poucos minutos do final de Lulu On The Bridge, ouve-se a voz de Amália Rodrigues que, em "Estranha Forma de Vida", canta "foi por vontade de Deus". É, talvez, esse o momento crucial do filme onde imagens e banda sonora conspiram para, subliminarmente, revelar a chave desta parábola sobre a possibilidade do milagre (e a improbabilidade de ele ocorrer), os universos perpendiculares, o corpo das mulheres, a luz dos pirilampos na noite, Deus como "trickster" imprevisível e a inexorabilidade do destino, isto é, o fado.


Paul Auster

Não haverá muitas dúvidas de que Paul Auster desejou que essa chave permanecesse semi-oculta. É preciso escutar com muita atenção a voz de Amália (em fundo, sob o diálogo), é necessário compreender o que ela canta (e o idioma português não é propriamente um esperanto universal) tal como é indispensável conhecer o que o fado significa. Mas esse indício — tal como aquele outro fugaz plano em que Harvey Keitel passa junto a uma parede onde, num graffito, se lê "Beware of God" — é apenas um dos vários que Paul Auster dissemina pelo filme para que, quem os souber interpretar, se vá aproximando, a pouco e pouco, dessa modalidade de leitura do mundo como um jogo de acasos irremediavelmente (des)comandado por uma absurda força maior. É nessa exacta medida que Lulu On The Bridge pode ser considerado um filme-musical: o seu segredo dissimula-se sob o disfarce cifrado de uma "mera" música incidental.



Mas não só. Antes, durante e depois, todo o filme e respectiva banda sonora são um prelúdio e fuga para a polifonia das "voices from the box", essa metafórica caixa dos milagres da qual se libertam as forças luminosas capazes de bifurcar a realidade e suspender o tempo. Até que, sobre a Halfpenny Bridge que, em Dublin, se ergue em arco sobre o rio Liffey, Lulu/Celia a lança (e se lança) para as águas e, assim, interrompe o curso desse desesperado romantismo virtual e autoriza que o primeiro universo prossiga um outro destino.



Como o filme, a banda sonora é o guia de viagem para um sonho. Abre com a voz "a cappela" de Mira Sorvino que canta "dreams can be reality, if you live your dream with me, wave goodbye to what you are, what you want is not so far" e encerra-se com esse símbolo de uma outra realidade que é "Singin' In The Rain", por Lena Horne. Entre ambos, sucedem-se Holly Cole, Don Byron, Edith Piaf, o "Stabat Mater" de Pergolesi, Cassandra Wilson, Jacky Terrasson e as paisagens sonoras de Graeme Revell. E, claro, Amália que antecipa dramaticamente o final com as palavras "coração independente, eu não te acompanho mais, pára, deixa de bater, se não sabes onde vais, porque teimas em bater? eu não te acompanho mais". (1999)

24 April 2007

COM O OUTRO PÉ NA MÚSICA



Se existe alguma verdade no célebre aforismo de Walter Pater segundo o qual "toda a arte aspira à condição da música", não há dúvida que alguns praticantes de outras "artes" não propriamente musicais o levam inteiramente à letra. Uma razoável lista de políticos — de Nixon a Jimmy Carter, John Quincy Adams, Bill Clinton, Harry Truman, Thomas Jefferson, Benjamin Franklin, Wolfgang Schuessel, Edward Heath, o príncipe Carlos de Inglaterra, Helmut Schmidt, o imperador Hirohito ou Condoleezza Rice (uma muito promissora menina-prodígio no piano) — foram ou são músicos amadores com reputações entre o "jeitoso" e o "excelente" e figuras como Einstein, Alexander Graham Bell, Frank Lloyd Wright, Thomas Edison, George Eastman (fundador da Kodak) ou até o circunspecto Alan Greenspan (presidente do Federal Reserve Board norte-americano mas, antes disso, aluno da Juilliard School of Music e músico de jazz profissional com a Henry Jerome Band em saxofone-tenor e clarinete) dedicaram-se igualmente à prática de um ou vários instrumentos, de forma episódica ou regular.


City Lights (real. e música Charlie Chaplin)

A área dos realizadores de cinema, naturalmente, não foge à regra. A New Orleans Jazz Band de Woody Allen não são, de todo, casos isolados. Indo bem lá atrás no tempo, Charlie Chaplin não apenas escreveu inúmeras peças de "chase music" para ser executada ao vivo durante os tempos do "cinema mudo" (para os seus filmes e não só) como, a partir de 1931, com As Luzes da Cidade, foi o autor de todas as partituras dos seus filmes, tendo inclusivamente fundado, em 1915, a Charlie Chaplin Music Company. Atitude idêntica têm John Carpenter (que, pelo menos desde 1970, com The Resurrection Of Broncho Billy, se tem ocupado das bandas sonoras da maioria dos seus filmes — Veio do Outro Mundo/The Thing, de 1982, entregue a Ennio Morricone, foi uma das raras excepções —, de Dark Star a O Nevoeiro, Assalto à 13ª Esquadra, Fuga de LA, Christine ou Halloween), Mike Figgis (o qual, antes de se dedicar ao cinema, fez parte da banda de R&B, The Gas Board — ao lado de um imberbe Bryan Ferry —, e, daí em diante, assegurou as partituras dos seus Stormy Monday, Morrer Em Las Vegas, A Perda Da Inocência, Miss Julie ou Time Code) e o mais jovem chileno Alejandro Amenabar que, confessadamente influenciado por clássicos ou quase-clássicos como Bernard Herrmann, John Barry, Howard Shore ou John Williams, compôs a música de Os Outros, Abre Los Ojos, Lengua de Las Mariposas, Tesis ou Mar Adentro.


Christine (real. e música John Carpenter)

Menos persistentemente do que estes, Clint Eastwood, David Lynch, Hal Hartley e Vincent Gallo também não dizem que não a meter a colherada nas bandas sonoras dos filmes que dirigem: Eastwood (devoto amante de jazz que pudemos ver recentemente ao piano, ao lado de Ray Charles, no volume Piano Blues da série de DVD produzida por Martin Scorcese, The Blues) deu o primeiro passo em Bronco Billy (1980) e, frequentemente na companhia de Lennie Niehaus, compôs para Imperdoável, Poder Absoluto, Um Mundo Perfeito, Um Crime Real, Space Cowboys e As Pontes de Madison County, ao lado do filho Kyle (músico de jazz), escreveu a música de Mystic River e será o compositor único do próximo Million Dollar Baby; David Lynch, ainda que quase indissociável do compositor Angelo Badalamenti, contribui frequentemente com "música adicional" para os seus filmes (mas, em Eraserhead e The Alphabet, a música é só sua), é co-autor, com Badalamenti, dos álbuns de Julee Cruise, Floating Into The Night e The Voice Of Love, e da video-performance Industrial Symphony nº 1 e publicou, em 2002, na companhia de John Neff, o álbum de "música inspirada por máquinas, fumo, fogo e electricidade", Blue Bob;


Eraserhead (real. e música David Lynch)

Hal Hartley, em nome próprio ou escondido sob o pseudónimo Ned Rifle, compôs para grande parte dos seus filmes, para Milk And Honey, de Joe Maggio, e reuniu uma selecção da sua "film music" no CD Possible Music; Vincent Gallo — membro de diversas bandas de rock como The Plastics, Pork, Bunny, Bohack ou Gray (de que fez também parte Jean Michel Basquiat) — foi responsável pela banda sonora de Buffalo 66 (a música do seu outro filme, Brown Bunny, é constituida por temas não originais de vários autores) e publicou os álbuns When e Recordings Of Music For A Film.
Finalmente, a querermos esticar um pouco mais a corda, poderiam referir-se ainda Jim Jarmusch — antes de se estrear no cinema, foi elemento da banda no/new-wave, Del Byzanteens, que gravou, em 1981, o álbum único, Lies to Live By — e o "realizador David Byrne" (True Stories, Ilé Aiyé) mais conhecido como ex-elemento dos Talking Heads, autor-compositor a solo, video-artista, fotógrafo ou "film musician" para O Último Imperador ou Young Adam. (2005)

22 April 2007

ESCUTAR A ESCRITA


Identidades, poetas, Amin Maalouf, lobulophone, uma trilogia no seu tomo inaugural, fado/não fado/pós-fado, imagens de telemóvel, maracujás do Alasca e giestas de Singapura. É destas matérias que se faz Não Sou Daqui, o quinto álbum de Amélia Muge, outro “espaço de fronteira” na canção moderna portuguesa para o qual ela sugere duas ou três chaves de entrada.

Quando se dá a um álbum um título como Não Sou Daqui, isso autoriza logo uma série de interpretações possíveis: “não sou deste mundo”, “não sou de Portugal”, “não sou deste tempo”, “não sou do lugar onde me querem arrumar”... quis dizer exactamente o quê?
Ao dizer “não sou daqui”, estou a dizer outra verdade: estou lá. Em última análise, podemos ir parar a outro grande chavão: a identidade é sempre algo em trânsito. Também se pode ir às questões artísticas e reflectir se, num mercado cultural em nos situamos um pouco à margem, isso significa que não estamos nele. Não só estamos como estamos com um estatuto que varia entre a exclusão e a desigualdade (risos).



Essa questão das identidades está bastante entranhada em todo o disco: desde a primeira canção (“Sete Portas Tenho Em Casa”) onde baralha e confunde marcas e referências de lugares diversos até à citação das Identidades Assassinas, do Amin Maalouf, na contracapa do “booklet”: “se os fanáticos de todas as cores conseguem tão facilmente impor-se como os defensores da identidade, é porque a concepção ‘tribal’ da identidade que prevalece ainda no mundo inteiro favorece tal deriva”... aliás, dizer “não sou daqui” não é largar uma identidade e procurar outra?
Ou, então, dizer que, para haver um espaço de todos, esse espaço não será de ninguém. Já não será uma soma de culturas e identidades mas outra coisa. Habitualmente, as identidades são reservadas para os humanos, nunca se diz que um livro tem uma identidade, tem um título. E, muitas vezes, passa-se o contrário: há certos livros que têm muito mais identidade do que muitas pessoas que são apenas um título. Neste disco, essa reflexão será muito mais evidente porque parto de uma ideia de canção da qual procuro aperceber-me da identidade. E, ao aperceber-me de que aí já existe, no mínimo, um espaço de fronteira, de hibridação ou de mestiçagem, ficam muito mais nítidos esses conceitos através dos quais pensamos a identidade.


É também por força desses automatismos identitários que, por mais áreas diferentes que a sua música atravesse, haverá sempre quem não desista de a “arrumar” na gavetinha da “música popular portuguesa”?
O “arrumar”, em princípio, não faz mal. O problema é o sentido que se lhe atribui. Eu própria, quando digo que estou a iniciar uma trilogia, estou a arrumar-me nalgumas gavetas. E, neste disco, predispus-me a arrumar-me naquela a que chamei a da “ideia de canção”. Andar com a casa sempre de pantanas também acumula muito lixo... Agora, se isso significa ficar preso dentro de uma gaveta de onde se está proibido de sair, é outra coisa completamente distinta. O problema é que não podemos transformar a gaveta do nosso quarto na gaveta de uma nação que é o que, na maioria das vezes, acontece.

O que a fez conceber essa trilogia (de que o segundo tomo será sobre a música popular tradicional e o terceiro se dedicará às relações entre linguagem e tecnologia) de modo autónomo relativamente aos álbuns anteriores que passavam todos eles também por esses mesmos caminhos?
Essas três coisas – a canção, a música da tradição e a marca da tecnologia no lado mais experimental da minha música –, para mim, estão sempre presentes, são como que o meu tripé de criação. Mas cada um desses discos irá ter o seu nome, o seu rosto. Eu sou um produto de várias coisas. Serão três chaves de entrada para diversas áreas que me interessam. No fim, continuará a ser apenas... “múgica” (risos).


A questão da identidade tem também a ver com a sua relação de toca-e-foge com o fado. Mas, neste álbum, no “Fadunchinho”, apesar de ser através das palavras da Hélia Correia, declara “amigos, rendi-me ao fado e o fado também a mim se rendeu”...
Alguém, em Portugal, é capaz de recusar que está antes do fado ou depois dele? Se calhar, na música tradicional, encontro coisas que são fado antes do fado. E, em muitos dos cantores de fado que têm a ver comigo (o Camané, a Mísia, a Mafalda Arnauth), encontro outras que já são pós-fado. Na tal casa que, convencionalmente, se chama fado e se vê como “a verdadeira canção da alma portuguesa”, eu sinto logo que não sou dali. Nem sequer nasci cá, não tive pais fadistas, não sou da Mouraria... para muitos será, talvez, um lugar de refúgio. Se eu pegasse num xaile, me vestisse de preto, cantasse fados da Amália e dissesse que era fadista, se calhar, ninguém ia contestar: que bom, era uma sem-abrigo e tinha encontrado uma casa que era minha! Não foi esse o meu caminho mas isso não quer dizer que não tenha influências. É, muitas vezes, surpreendente sermos tanto aquilo que pensamos que não somos. Não sou dali mas, de vez em quando, estou lá.


Tanto no booklet como na componente DVD do disco, utilizou uma captação de imagens que se poderia classificar de “baixa-fidelidade”, através do telemóvel. Porquê ir por aí em vez de optar por altas definições e tecnologias “state of the art”?
Se eu não tivesse vivido em Moçambique no período a seguir à independência, talvez nunca tivesse compreendido como a escassez de recursos não implica necessariamente o bloqueio do pensamento. Não é por se usar um meio altamente sofisticado que as ideias que ele transporta são forçosamente grande coisa. Isto começou por ser um desafio e também, lá está, uma preparação para o outro disco. Nós vamos varrendo tecnologias que deixam de ser encaradas como viáveis só porque apareceram outras. Se calhar, os potenciais do quadro preto nunca foram completamente explorados... como se o meio estivesse obrigatoriamente agarrado ao desenvolvimento das ideias. Aliás, também, nos desenhos e grafismos que surgem no “booklet”, exponho um pouco o meu processo de criação: muitas vezes, antes de perceber que sonoridades saem de um poema, desenho as palavras, decomponho-as, são bússolas, mapas de entrada nesse universo. O do “Escutar Caetano”, por exemplo, é um bocado a ideia de como se escuta uma escrita. Foi depois disso que pedi a uma amiga que faz uns ruídos fantásticos com a orelha que gravasse esses sons do “lobulophone” que samplámos e que é um contraponto deste mapa que aqui está. Aprender a ouvir, é aprender a escutar o ruído e o silêncio e, depois, as outras coisas. Estamos sempre entre estes dois limites. (2007)
"THE MASS PARADES AND THE FLAGS - JUST AMAZING, REALLY BEAUTIFUL!"











































(2007)

21 April 2007

O CERCO POLITICAMENTE CORRECTO (continuação):

Bryan Ferry's Nazi gaffe


Olympia (real. Leni Riefenstahl, 1938)

"My God, the Nazis knew how to put themselves in the limelight... Leni Riefenstahl's movies, Albert Speer's buildings, the mass parades and the flags - just amazing. Really beautiful" (Bryan Ferry in "Welt Am Sonntag")

When Marks & Spencer recruited singer Bryan Ferry to be the face of its menswear collection, it believed his reputation as rock's "king of cool" would help them to boost sales.
But customers and management of the retailer, founded by Russian-Jewish refugees, will be alarmed to learn that the elegant singer has admitted he draws inspiration from the aesthetics of Nazi Germany.
Ferry, the lead singer of Roxy Music, has caused outrage at home and abroad for remarks he made to a German newspaper about his admiration for the work of Leni Riefenstahl, notorious for her Nazi propaganda films, and the architecture of Albert Speer.


Outubro (real. Sergei Eisenstein, 1927)

In an interview with "Welt am Sonntag", the 61-year-old also acknowledged that he calls his studio in west London his "Führerbunker". "My God, the Nazis knew how to put themselves in the limelight and present themselves," he said. "Leni Riefenstahl's movies and Albert Speer's buildings and the mass parades and the flags - just amazing. Really beautiful".
One German correspondent on the website of "Freundin", a German women's magazine, writes: "This can't be called intellectual humour and it tests even my tolerance when you hear such stupid, crazy and dangerous waffling."
The Labour peer and former war crimes investigator Greville Janner said: "It is deeply offensive when people think they can joke about the Nazis. Riefenstahl was part of the Nazi movement and the Nazis were murderers. And the mass parades he refers to make me vomit. Marks & Spencer should have a serious rethink about employing him".


O Destacamento Vermelho Feminino (Ópera de Pequim, 1964)

Nick Viner, chief executive of the Jewish Community Centre for London, said that Ferry's remarks were "ill-conceived" and "left a bad taste in the mouth".
"Riefenstahl was responsible for sending people to their deaths. There is a fine line between people going about their business and people colluding in truly terrible behaviour".
Ferry's manager dismissed the protests as "absurd". "To take offence here is to confuse the aesthetic with the ideological," Steven Howard said. "To suggest that a certain appreciation of art and architecture that happens to be associated with the Nazi regime means condoning the actions of that regime is illogical". ("The Independent Online" 15.04.07)


O Couraçado Potemkine (real. Sergei Eisenstein, 1925)

Ferry apologises for Nazi remarks

Singer Bryan Ferry has apologised for an interview in which he praised the iconography of the Nazi party. The UK star is reported to have told a German newspaper that the "mass marches and the flags" of Hitler's regime were "just fantastic - really beautiful". Jewish leaders in Britain condemned the comments, and called for Marks and Spencer to drop Ferry as a model. "I apologise unreservedly," the singer said in a statement, adding he found the Nazi regime "evil and abhorrent".
According to press reports, the 61-year-old told the "Welt Am Sonntag" newspaper last month: "The way that the Nazis staged themselves and presented themselves, my Lord! I'm talking about the films of Leni Riefenstahl and the buildings of Albert Speer and the mass marches and the flags. Just fantastic - really beautiful".


Olympia (real. Leni Riefenstahl, 1938)

(...) In a statement released on his behalf, Ferry said he was "deeply upset" by the publicity surrounding the interview. "I apologise unreservedly for any offence caused by my comments on Nazi iconography, which were solely made from an art history perspective," he said. "I, like every right-minded individual, find the Nazi regime, and all it stood for, evil and abhorrent".
"We do welcome the fact that he has issued a swift comment that there was no intention to condone the Nazi regime," said Jeremy Newmark, chief executive of the Jewish Leadership Council.
"Nevertheless, his choice of language was deeply insensitive", he added.
Lord Greville Janner, vice-president of the World Jewish Congress, told Reuters news agency: "His apology was total, appropriate and absolutely necessary. I hope that he will never make the same mistake again". (BBC News 16.04.07) (2007)
O “FAKE” COMO ARTE


Lucky Soul - The Great Unwanted



Au Revoir Simone - The Bird Of Music

Um naco da filosofia de Andy Warhol: “Ando a ver se me decido entre ser sincero ou fingir que o sou. Sempre pensei que toda a gente fingia. Mas, agora, sei que não é assim. Não tenho a certeza se devo fingir que tudo é verdade ou que tudo é falso. Não sei se está a ver: é que, para que uma coisa se tornasse verdadeira, eu teria que a fingir”. É possível que não tenham reparado mas acabaram de vos cair no colo as coordenadas éticas/estéticas de que necessitam para saborear sem preconceitos nem sentimentos de culpa os dois monumentos (estou a pesar cuidadosamente as palavras) do mais puríssimo “fake” que são The Great Unwanted e Bird Of Music: tanto os Lucky Soul como as Au Revoir Simone fingem tão completamente que chegam a fingir que é pop a pop que deveras sentem.



Ali Howard não poderia ser mais sincera no seu fingimento de Debbie Harry – que é tão sentido e autêntico que incorpora também Sandie Shaw, Dusty Springfield, Petula Clark, Diana Ross e Ronnie Spector – e os restantes Lucky Soul (origem: Greenwich, Londres), com a mais profunda convicção, simulam viver nos anos dourados da Tamla Motown e terem sido colegas de escola das Supremes, Shangri-Las, Ronettes ou Shirelles. O que, no admirável mundo da mentira wildeana (ou da simulação de Warhol), é, evidentemente, verdade e oferece o bónus sem preço de uma mão-cheia de pop-pop-pop gloriosamente clássica, daquela que, vinte segundos após ter disparado em corrida, explode no fogo-de-artifício de ofuscantes refrões que se agrafam irremediavelmente aos tímpanos.



Erika Forster, Heather D’Angelo e Annie Hart, as três sílfides de Brooklyn foragidas de um sonho húmido de David Hamilton (ou de David Lynch, fã confesso que as descreveu como “innocent, hip and new"), essas, alimentam diariamente a ilusão de a Casio-pop de porcelana de Bird Of Music – Sofia Coppola bem poderia ter esperado alguns anos para fazer dela a banda sonora de Virgin Suicides – ser, na verdade, o segundo álbum “perdido” dos Young Marble Giants de que nem Stereolab nem Broadcast tiveram a arte de sintonizar a alma para o poder canalizar no plano terreno. Não ousemos duvidar: o nome do trio poderá ter sido tomado de empréstimo a Pee Wee’s Big Adventure, de Tim Burton, mas apenas Alison Statton (aliás, Erika) poderia cantar “Let the sunshine, let it come, to show us that tomorrow is eventual”. (2007)

20 April 2007

AT THE MOVIES



"Why is it whenever someone starts talking about civilization I hear the sound of machine guns?"


Hal Hartley em Sundance


(trailer)

19 April 2007

ÓPERA DOS TRÊS VINTÉNS



Tom Waits - Orphans: Brawlers, Bawlers & Bastards

O que fazer quando o autor de uma obra sobre a qual devemos escrever nos tira o pão da boca? Quero dizer, como resolver o problema de alinhavar alguma coisa acerca de Orphans, de Tom Waits, que ele próprio não tenha já despachado de forma definitiva? Reparem: para explicar como estas 54 canções (arrumadas em três discos, nas categorias Brawlers, Bawlers e Bastards) vieram ao mundo, viajaram desirmanadas e aqui aportaram, salvas do desnorte e dos maus tratos pelo seu criador, Waits conta-nos que elas são apenas aquilo que caiu para trás do fogão enquanto ele e Kathleen Brennan cozinhavam e que apenas quis facilitar a vida aos fãs que se atiram como lobos esfaimados a qualquer migalha que ele deixe esquecida sobre a mesa.



E oferece todos os detalhes sobre o modus operandi: "Quisemos que fosse como se estivéssemos a esvaziar os bolsos depois de uma noite de jogatana e gatunagem. Tinha de soar como um programa de rádio em onda-curta onde o passado faz sequência com o futuro e apanha aquelas coisas que encontramos pelo chão neste mundo, em mundo nenhum ou, talvez, no outro mundo. Juntar todo este material foi como reunir ovelhas tresmalhadas. Um bom disco deve ser como uma boneca de trapos, com lantejoulas no cabelo, conchas nas orelhas e cheia de dinheiro e rebuçados. Ou como uma carteira de senhora, com um canivete suíço e um estojo de primeiros socorros contra as mordidelas de cobra".



Deve aqui esclarecer-se que, das "ovelhas tresmalhadas" (na realidade, apenas uma fracção do rebanho à solta: no enciclopédico site TomWaitsLibrary, registam-se, pelo menos, outras 80 que ainda não entraram no redil), 24 andavam dispersas por bandas sonoras de filmes como Big Bad Love, Dead Man Walking, Sea Of Love, Pollock, The End Of Violence, Liberty Heights, Ironweed ou Bunny, haviam sido oferecidas a Johnny Cash, Teddy Edwards ou John Hammond, pastavam em sossego, em álbuns "de homenagem" como Lost In The Stars (sobre Kurt Weill) e Stay Awake: Interpretations of Vintage Disney Films, ou ruminavam versões de temas de Leadbelly, Daniel Johnston, Skip Spence, Sinatra ou Ramones. As outras 30 — entre textos de Bukowski e Kerouac cantados ou recitados, aulas de biologia exótica, sobras dos álbuns "oficiais" e produtos colaterais de experiências avulsas — nunca antes haviam sido publicadas sob nenhuma forma.



Mas todas decorrentes de um mesmo processo ("Gosto de trabalhar a música, tomar decisões acerca dela: esta canção devia ser mais estranha, aquela ali mais violenta, aquela outra não tem a côr certa. Detesto que outros tomem esse género de decisões por mim. Afastem a merda desses instrumentos para longe! Arranquem-lhes a puta da cabeça! Mijem-lhes dentro! Quando nos batemos por coisas desse género, quando a porra duma canção nos dá realmente a volta ao juízo, quando nos apetece que ela estique o pernil e nos dá gozo vê-la ali a sangrar no chão e dizer-lhe:'Tu, minha badalhoca, nunca hás-de entrar no meu álbum!' Estou sempre pronto a morrer por uma canção assim e pronto a matar por dela... Gosto de arrancar um olho a uma canção que não presta e enxertá-lo noutra, gosto de canibalizar a música. Quando fazemos um álbum, escrevem-se cinquenta canções e, inevitavelmente, algumas ficam inacabadas. São apenas o pâncreas, o estômago ou os lábios que utilizaremos noutra"), montadas como esculturas feitas de sucata resgatada ao ferro-velho e soldada ao tronco de uma roseira ressequida em chamas.



Em versão Brawlers ("arruaceiras"— blues de Howlin' Wolf com cio, Beefheart crucificado numa teia de aranha, Robert Johnson sodomizando o demo, Dylan de faca na liga), Bawlers ("gritadas"— leia-se ao contrário: cabaret das luas de Júpiter, lirismo irlandês no bordel, country segundo a regra dos papiros do Nilo) ou Bastards (as "enjeitadas" que nenhuma taxonomia conhecida aceitará acolher) e umbilicalmente dependentes do processo de comunicação telepática com uma quadrilha de músicos — mais de 60, no total — que, caso Tom Waits lhes proponha a encenação de um ritual vudu no gueto judeu de Quioto, nem por um segundo pestanejam.



No fim de contas, apenas a consagração derradeira de um glorioso fado de autor de óperas de mendigos e de uma faustosa transcendência de vira-lata, assente numa estética ("Sou a favor de tudo o que faça uma cultura andar para a frente. Recentemente, comi sushi no México. O tipo perguntou-me se eu o queria com queijo. É a isto que eu chamo uma cultura viva!") e nos andrajosos farrapos de uma ética (questionário de Proust, para a "Vanity Fair", de Novembro de 2004: "P - Qual a virtude mais sobrevalorizada? R - A honestidade"; "P - Em que ocasiões mente? R - Quem precisa de uma ocasião?"; "P - Qual a sua característica mais forte? R - A capacidade para discutir em profundidade um livro que nunca li").
Façam-lhe uma estátua. Ele, depois, pinta-a de verde-alface. (2006)

17 April 2007

SOB O CÉU DE BERLIM



Naquele que, de agora em diante, passará a ser designado como o "Manual de Utilização do Mundo Segundo o Método-Tom Waits" (MUMSMTW), no capítulo "concerto", pode ler-se: "Nunca se deve levar a carteira para o palco. Não se pode tocar com dinheiro no bolso. Há que tocar como se se precisasse do dinheiro". E, um pouco mais à frente, em "digressões": "Quando se faz uma digressão é necessário inventar todas as noites novas circunstâncias. Gosto de me transformar: em animais, em insectos diferentes, gosto de uivar, de gritar... Numa sala silenciosa, tem-se demasiada consciência da própria voz. Gosto da minha voz, posso fazê-la pequenina ou enorme. E, se tiver uma laringite ou ficar afónico durante uma digressão, ninguém repara... Cantar uma canção em palco é como tentar beber um copo de água com uma mão artificial. Gostava de descobrir um processo que, para mim, fosse simples. Sete músicos, luzes, todo esse ritual é demasiado esgotante. Apetecia-me acabar com isso tudo. Só precisava de uma máquina de fumos, um megafone e um palco do tamanho de uma mesa. Actuava em parques de estacionamento diante de pessoas que tivessem pago mil dólares sob a garantia de que a sua vida iria ser mudada para sempre".



Pode, então, afirmar-se com um considerável grau de certeza que, no início da semana passada, em Berlim, Tom Waits cantou realmente "como se precisasse do dinheiro": no fim das quase duas horas e meia de concerto, tinha a camisa encharcada em suor. E, cotejando as regras estabelecidas no MUMSMTW com a realidade, deve dizer-se que não, não houve máquina de fumos, três músicos (Marc Ribot - muitas guitarras, banjos, fliscorne -, Larry Taylor - baixo acústico e eléctrico -, Brain - bateria e percussões várias) bastaram e sobraram, o megafone foi exibido logo na primeira canção ("Make It Rain") e não mais levantado do chão e as luzes não podiam ter sido mais discretas.



O palco não seria do tamanho de uma mesa mas, de tão atravancado que estava com toda a traquitana capaz de produzir som que Waits e cúmplices trouxeram lá de casa, chegava a parecer. O local escolhido não foi exactamente um parque de estacionamento — embora o envolvimento da boca de cena do Theater des Westens se assemelhasse bastante ao túnel de entrada de uma mina de carvão — nem os bilhetes custavam mil dólares: a plateia andava pelos 100 euros mas, rapidamente esgotados todos os oito concertos europeus (Antuérpia, Berlim, Amsterdão e Londres), na Internet, mais do que quadruplicaram. E, sim, não será um enorme abuso afirmar que, para quem assistiu, a sua vida poderá ter mudado para sempre.



A transformação, primeiro. Não propriamente insecto-kafkiana mas antes a interiorização de uma personagem mista de corcunda de Notre-Dame, profeta do fim do mundo sem-abrigo e bluesman exumado do saguão da história, de fatinho escuro um número abaixo e "porkpie hat" obrigatório (significativamente ou não, só o tiraria já perto do final para, como que despindo por um instante a máscara, interpretar a sua única "topical song", a "Day After Tomorrow" anti-guerra). Waits cultiva deliberadamente a pose e os esgares do símio espástico, movimenta-se quase permanentemente como uma marionete cujo manipulador insiste em lhe vergar a coluna, estende os braços e saúda o público repetidamente com os dedos em garra. A dramaturgia no interior da qual esta figura singular emerge vive pouco da iluminação (do nocturno funcional às tonalidades-David Lynch, a escorrerem, aqui e ali, para o vermelho-sangue), muito da voz de silicose terminal e do universo paralelo das canções que ela canta e pelo menos outro tanto da encenação sonora — "encenação" é a palavra certa — que Tom Waits (da guitarra, ao piano ou aos teclados arqueológicos — chamberlain? mellotron? calíope?...), Ribot (o inventor imperial da estética da guitarra psicótica), Taylor (a pulsação cardíaca de um encarcerado nas masmorras) e Brain (tudo o que, agredido, vibra) vão caoticamente edificando.



Trata-se, porém, de um caos com uma ordem superior implícita. Aquela, por exemplo, que converte "Sins Of My Father" numa litania sonâmbula de expiação com "insert" final do espiritual "Wade In The Water", "Way Down In The Hole" numa "chain-gang song" pedrada ou faz de "Hoist That Rag" uma rumba demente e inquietantemente eufórica. Em "November" (Ribot em National Steel Guitar) e "Alice", inventa-se um atalho entre Kurt Weill e o fado, entre o cabaret e a "torch song" impressionista, que já antes "All The World Is Green" (com banjo subaquático) deixara entrever.



O caos, ele mesmo, a amaldiçoada desordem do mundo, são a matéria-prima da martelada charanga infernal de "God's Away On Business" ("Digging up the dead with a shovel and a pick, it's a job, it's a job, bloody moon rising with a plague and a flood, join the mob, join the mob!") ou da obstinada fanfarra de espectros de "Misery Is The River Of The World" ("The higher that the monkey can climb, the more he shows his tail, call no man happy 'til he dies, there's no milk at the bottom of the pail"); mas Waits concede-nos uma pequena pausa no "carpet bombing" de pessimismo antropológico (algures no MUMSMTW, em "espécie humana", lê-se: "Posso perfeitamente dizer que a espécie humana nada tem de amável mas estou sempre à espera que me surpreendam. Sobreponho umas coisas a outras com sons e imagens. Gosto de ligar três rádios ao mesmo tempo. Provavelmente faço o mesmo com as pessoas quando olho para elas. Vejo-lhes as asas de anjo mas também o cabelo a arder") para um momento de "comic relief"... muito à sua maneira: a história de Johnny Eck (aliás, "Table Top Joe", onde aproveita para comandar o público num côro de forçados das galés), o monstro-anão sem membros, ou aquela outra retirada do seu "National Geographic" surreal acerca da aranha-macho que estende uma longa pata para tocar um acorde nos fios da teia que apenas a fêmea consegue escutar...



Suponho que, de certa maneira, isto deverá constituir a concretização de um dos pontos do programa estético-científico a que, noutro passo do MUMSMTW, Tom Waits se refere ("O que eu gostava era de ir para o espaço com uma banda e colunas no exterior da nave para ver se conseguíamos comunicar. Escolhia uma banda mesmo esquisita e desenvolvíamos o nosso próprio programa espacial") e que terá sido emitido com pleno êxito a partir do céu sobre a "interzone" de Berlim. É verdade, os alemães são, afinal, capazes de exteriorizar emoções e ruidosamente obrigaram Waits a voltar por duas vezes ao palco para deitar abaixo as poucas pedras que restavam de pé. Primeiro com "Metropolitan Glide" (e o regresso do prodigioso "beatbox poet musician" de Vancouver, CR Avery, que tocara também, logo no início do concerto, em "Don't Go Into That Barn"), "Get Behind The Mule" e "Trampled Rose", depois — alapado a um piano vertical e, dir-se-ia... quase humano —, "Invitation To The Blues" e "House Where Nobody Lives".



A dar-se o caso de, fugazmente, aquele-de-que-não-falaremos não se encontrar "away on business", desta digressão poderá resultar um DVD onde, talvez, "Top Of The Hill", "Lost At The Bottom Of The World"(um inédito escrito para o documentário "Long Gone", de Jack Cahill e David Eberhardt), "Dead And Lovely", "Singapore", "Jockey Full Of Bourbon", "Kommeniezuspadt", "Walk Away", "Johnsburg, Illinois", "Lost In The Harbour" ou "Lucky Day" — que tocou nos outros dois dias de Berlim e em Antuérpia mas que substituiu por outras no concerto de dia 16 — possam igualmente constar. Porque, já sabemos, claro, "é necessário inventar todas as noites novas circunstâncias". Ou, citando pela última vez o MUMSMTW, criar as condições necessárias para que um determinado processo de captura resulte bem: "Estou convencido que desenvolvemos uma antena para as canções e que elas gostam de andar à nossa volta. Trazem umas amigas com elas e, quando damos por isso, estão por ali sentadas ao pé de nós, a beber-nos a cerveja e a dormir no chão da sala. E, ainda por cima, usam o nosso telefone... São umas sacaninhas ingratas e ordinárias..." (2004)
COM SANGUE NAS UNHAS



Tom Waits - Real Gone

É dos livros: a crítica é tudo menos um exercício de objectividade. A de música não foge à regra. E, se a música é a de Tom Waits, então, entramos no domínio da total subjectividade. Pelo que a tentação de realizar o impossível — ser quase integralmente frio, documental e objectivo — se torna realmente muito grande. Será, inevitavelmente, um exercício falhado mas que, a bem da "ciência", poderá ser experimentado. Começando, por exemplo, pela estatística. É útil saber que, desde a sua estreia, em 1973, Waits possui uma discografia que inclui 19 álbuns e 8 compilações. Além desses, participou em 81 discos de outros artistas, colectâneas ou gravações temáticas. Na América e na Europa, foram-lhe dedicados 15 álbuns de homenagem contendo canções suas (no original ou traduzidas) e cerca de 200 artistas interpretaram pelo menos um tema seu. Como actor ou compositor/intérprete, colaborou numa centena de filmes, documentários e videoclips. No teatro e na dança, a sua música foi utilizada em 9 espectáculos e sobre ele existem publicados 12 livros (curiosamente, nenhum deles norte-americano). O que, em síntese, permite afirmar com um considerável grau de segurança que, na categoria "músico de culto", Tom Waits é um caso à parte.



E o que afirma ele próprio acerca da sua música que possa ser relevante para o entendimento do último álbum Real Gone? Será, decerto, o primeiro álbum onde não utiliza piano mas, desde há muito que, segundo ele, "Um piano não é senão lenha para a fogueira. Lentamente, fui-o descascando, tábua a tábua, até não restar senão metal, cordas e marfim. Todas as pessoas que tocam piano não têm senão um desejo que é vê-lo cair do décimo sétimo andar de um prédio! E a razão disso é ele ser tão pesado, estorvar tanto... Nunca podemos levá-lo connosco, é sempre um problema, acaba por nos devorar as tripas". Sobre a própria matéria das canções e o seu particular ângulo de visão, vale a pena prestar atenção a uns quantos pontos essenciais: 1) "Nas minhas canções, não procuro o lado triste e sombrio da vida mas também não sou insensível ao ponto de fechar os olhos e fingir que nada de mau sucede à minha volta. O meu trabalho é claro: contar histórias. E, de quando em quando, algo me murmura ao ouvido coisas bonitas e tristes, dramas sangrentos e histórias de veludo. Escuto-as todas e depois escolho. Em geral, prefiro as mais reais, aquelas que me fazem cravar as unhas no tampo da mesa sem dar por isso. Quando dou pelo sangue, sei que a canção é boa";



2) "Não tenho paciência para aquelas pessoas que envernizam o que escrevem. Gosto que me digam que havia pastilha elástica colada por baixo da mesa, coisas assim... Para se escrever boas canções é preciso ser-se uma espécie de detective privado. Numa canção, prefiro que um tipo me diga que foi à farmácia e não havia preservativos do que escreva que 'os rumos das nossas vidas se cruzaram na semente do universo'. Parece-me um bocado de lixo cósmico a mais"; 3)"Um bom talhante aproveita tudo o que pode da vaca. Tenho pedaços de canções por aí espalhados. Se ainda me lembrar delas, aproveito-as, senão andam-me a passear pela cabeça e acabam por se despenhar de uma ribanceira abaixo. Toda a gente gosta de trabalhar com matéria prima fresca mas não, não tenho nenhum banco de esperma"; 4) "O meu filho Casey toca bateria na minha banda. É natural. Se se cresce numa família que tem uma agência funerária, é muito provável que se venha a ser gato-pingado. É praticamente inevitável, tem-se muito mais apoio se entrarmos para o negócio da família. Eu disse-lhe, se quiseres ser astronauta não te vou poder dar muita ajuda".



Adiante-se aqui que Real Gone é todo este programa elevado à décima potência e edificado sobre uma matriz de percussão vocal/"human beatboxing" do próprio Waits, interferências de "turntablism" e radical aspereza sonora. Por fim, suspenda-se o ensaio de pseudo-objectividade: é um grande e nada fácil álbum. (2004)

15 April 2007

Off The Records: O FADO SEGUNDO TOM WAITS



No universo de improváveis realidades habitado pelas canções de Tom Waits, já nos habituámos a tropeçar em todo o tipo de despojos da literatura, da música e da cultura americanas, mas também de todo o mundo. Como ele diz: «Gosto de arrancar um olho a uma canção e enxertá-lo noutra. Esta tem um olho como deve ser, a outra tem a pele bonita. Gosto de canibalizar a música. Quando fazemos um álbum, escrevem-se cinquenta canções, e algumas ficam inacabadas. São apenas o pâncreas, o estômago ou os lábios que utilizaremos noutra».
Naturalmente, é isso que volta a acontecer nos recentes Alice e Blood Money. Mas, quase de certeza, irá passar despercebido a muita gente que existe, dissimulada algures por entre a gloriosa sucata sonora, aquilo que ele, Tom Waits, imagina ser a sua versão de um... fado!



É a décima faixa de Blood Money, dá pelo nome de «The Part You Throw Away» e foi o seu fidelíssimo guitarrista Joe Gore (que, aliás, toca no disco, embora não nesse tema), há três anos, de passagem por Portugal para a produção do último álbum dos Belle Chase Hotel, que me revelou o segredo: Waits, não sendo um conhecedor erudito, gosta de fado, escutou Amália, mas preferir-lhe-á a variante mais «hardcore» e castiça de Alfredo Marceneiro (Gore não estava bem seguro de se tratar mesmo desse nome...), e, em «The Part You Throw Away» - já pensado para integrar Mule Variations mas, então, guardado para próxima oportunidade -, quis projectar a sua visão da canção de Lisboa. Ainda passou primeiro pela voz de Ute Lemper em The Punishing Kiss, e eis, finalmente, agora, interpretada pelo seu autor, a história onde «in a Portuguese saloon a fly is circling round the room». Um fado inesperadamente em compasso ternário, mas com Tom Waits já se sabe como é...


You dance real slow
You wreck it down
You walk away, then you
Turn around
What did that old blonde
Gal say?
That is the part...
You throw away

I want that beggar's eyes
A winning horse
A tidy Mexican divorce
St. Mary's prayers
Houdini's Hands
And a barman who always
Understands

Will you loose the flowers
Hold on to the vase
Will you wipe all those teardrops
Away from your face
I can't help thinking
As I close the door
I have done all of this
Many times before

The bone must go
The wish can stay
The kiss don't know
What the lips will say
Forget I've hurt you
Put stones in your bed
And remember to never
Mind instead

Well all of your letters
Burned up in the fire
Time is just memory
Mixed in with desire
That's not the road 
It is only the map...I say
Gone just like matches
From a closed down cabaret

In a Portuguese saloon
A fly is a circling around the room 
You'll soon forget 
The tune that you play
For that is the part
You throw away
Ah, that is the part
You throw away


Tom Waits (2002): "Gosto de coisas mal compreendidas. Penso que tenho um problema de processamento auditivo. Gosto de ouvir uma canção num rádio ao longe e não a perceber bem quando é interrompida pelo som de um avião, do vento ou de um tractor. Gosto das peças que faltam. Não gosto das coisas muito arrumadinhas. O Terry Gilliam ouviu aquela frase de 'The Part You Throw Away' onde canto 'In a Portuguese saloon' e julgou que eu estava a dizer 'On the porch the geese salute'. Fica muito melhor assim! Espero que haja muito mais gente que me compreenda mal".(2002)

14 April 2007

AGUARELA E BOURBON

Tom Waits - Alice e Blood Money

Quando se interroga Tom Waits acerca da forma como encara a escrita de canções, ele costuma responder coisas como: «O que eu faço é escrever canções com três patas que se conseguem ter de pé sozinhas. Desenvolver uma canção em estúdio é como cortar um dedo para o fazer entrar numa luva. Corre-se sempre o risco de ficar com mais dedo do que luva. Escrever uma canção é como talhar um pau em bico. Algumas canções são feitas de madeira, outras de vidro e outras de papel. Essas, quando o vento pára, deixam de voar, termina a sua existência».



Ou, então, entrega-se à pura divagação: «As canções são grandes viajantes e vêm de sítios muito distantes e diversos. Às vezes, quando chegam, andamos em viagem. Muitas passam tão depressa que nem tempo temos de as ver. O importante é apanhá-las em voo, fabricá-las rapidamente e guardá-las bem». De vidro, de papel, de pau talhado em bico, apenas com três patas e certamente apanhadas em voo, Alice e Blood Money são as duas mais recentes colecções de canções de Tom Waits, e é indispensável que se diga desde já que estabelecem para o resto do ano um termo de comparação improvavelmente igualável.



Publicadas em simultâneo, reúnem o segundo e terceiro painéis da trilogia de óperas concebida com Robert Wilson e iniciada, em 1990, com The Black Rider. Alice, com texto de Paul Schmidt (sobre o original de Carroll), foi estreada em Dezembro de 92 em Hamburgo pelo Thalia Theater, tendo sido apresentada em Lisboa, no CCB, em 94, e Blood Money (baseado no Woyzeck, de Büchner) subiu ao palco em Novembro de 2000, no Betty Hansen Theatre, de Copenhaga. Se ambas retêm um certo «ar de família» com os ambientes musicais e de fábula poética de The Black Rider, temperados pelo alucinado cafarnaúm da sucata sonora que Waits prefere aos timbres convencionais («Trabalho de uma forma muito básica mas uso coisas que não são habitualmente vistas como instrumentos: uma cadeira arrastada pelo chão, umas boas pancadas num cofre, sinos, megafones, instrumentos defeituosos. A verdade é que eu não gosto de linhas rectas. O problema é que a maior parte dos instrumentos são quadrados e a música é sempre redonda»), talvez nunca como aqui a música se tivesse assemelhado tanto a uma aguarela sobre a qual, inadvertidamente, se entornou um copo de «bourbon».



Em Alice, por entre charangas de circo caleidoscópicas e danças de salão de ópio, predomina o tom de elegia surreal dissimuladamente erótica de que «Alice», «Lost in the Harbor» e, sobretudo, o assombroso «tone poem» de «voyeurismo» impressionista «Watch'em Disappear» serão os momentos maiores num libretto/partitura integralmente admirável. O milagre é que Blood Money lhe consiga ser, porventura, ainda superior: imprecação feroz contra a imundice do mundo e da espécie («If there's one thing you can say about mankind, there's nothing kind about man», uiva ele depois de ter explicado que «all the good in the world you can put inside a thimble and still have room for you and me»), é um carrossel de litanias infernais, weillianismos esventrados, urros das galés e estropiadas valsas agridoces que, sobre uma espiral ébria de acordeões, clarinetes, marimbas, calíopes, chamberlains e pianos de brinquedo, retrata a negro e vermelho-sangue um mundo em que «God's away on business» e invectiva «the ones that we kept in charge, killers, thieves and lawyers». Exactamente o género de música sem a qual é impossível viver. (2002)