26 March 2007

Off The Records:

A COR DA MÚSICA



A história tem o carimbo vincadamente idiota do "politicamente correcto" norte-americano. Mas que, nem por isso, deixa de ser incomodativo e, pior, perigoso: Stephin Merritt, o óptimo autor de canções dos Magnetic Fields, teria tido a ousadia de declarar que não gosta de hip-hop, detesta os OutKast e Beyoncé e — ultrage supremo — pensa que "Zip-A-Dee-Doo-Dah" (um tema do musical Song Of The South, de Disney, de 1946, comummente considerado como racista) é uma excelente canção.



Será ou não. Mas a verdade é que pouco importou que ele tivesse acrescentado que essa é a única coisa aproveitável do musical, adiantando que "todo o resto é terrível". Imediatamente os críticos Sasha Frere-Jones, do "New Yorker", e Jessica Hopper, do "Chicago Reader", trataram de atiçar as brasinhas inquisitoriais, denunciando Merritt perante o universo enquanto vil exemplo de peçonhento racista. Outras provas adicionais de culpa seriam o facto de, em Maio de 2004, quando convidado pelo "New York Times" para escrever sobre alguns discos recentemente publicados, Merrit só se ter pronunciado sobre artistas brancos e de, numa lista solicitada pela "Time Out/New York" (um disco por cada ano do século XX), apenas 11% serem de músicos negros.

Curiosamente (apesar de me circular no sangue uma significativa percentagem de genes africanos para lá lançados há quatro gerações), eu, como muita gente de todas as etnias, também não morro de amores pelo hip-hop — que nem é já exclusivamente negro —, nem tenho especial apreço por Beyoncé ou pelos OutKast. Servirá como atenuante gostar de Coltrane e de Miles Davis? E achar que o cinema de Leni Riefenstahl ou de Einsenstein são dois cumes da arte do século XX, converte-me, instantaneamente, em nazi ou comunista?

Por outro lado, Frere-Jones e Hopper sentirão a música árabe tão instintivamente natural e próxima como eu, inexplicavelmente, sinto? E se, ao escutarem ópera clássica chinesa, se aperceberem da existência de um universo cultural no qual, dificilmente, alguma vez penetrarão, deverão fustigar-se violentamente em expiação de um terrível pecado "pc"?

Conduzamos o raciocínio ao limite: caso Stephin Merritt fosse, de facto, racista (o que só muito improvavelmente será verdade), isso desvalorizaria, de um momento para o outro, todo o seu magnífico "songbook"? Deixem-me só com mais uma angustiante interrogação: terei eu amado como ela realmente merece a música de Burt Bacharach, Marc Bolan e Serge Gainsbourg até ao momento em que John Zorn (na colecção "Great Jewish Music") teve a caridade de me fazer descobrir — assunto em que nunca me detivera um segundo a pensar — que eles eram judeus? (2006)

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