26 March 2007

PESADELOS DE EMBALAR *



The Gothic Archies - The Tragic Treasury/Songs From A Series Of Unfortunate Events

Não se pode dizer que Stephin Merritt corresponda exactamente à totalidade dos Magnetic Fields. Ou dos 6ths. Ou dos Future Bible Heroes. Ficar-se-à, para aí, apenas por noventa e tal por cento de cada uma dessas bandas. Os Gothic Archies — uma auto-proclamada "gothic-rock-bubblegum-pop-band" —, porém, contam-no como único membro embora ele admita que lhe daria jeito recrutar mais uns quantos. Não é exactamente um pseudónimo, nem um heterónimo, nem sequer um "nom de plume" mas aquilo a que o próprio Merritt chama o seu "nom de ukulele". O que, quando nos recordamos que o ukulele não é senão o nosso bem amado cavaquinho — que, a bordo do veleiro Ravenscrag (sim, tudo isto, como raramente acontece, tem nomes e moradas), a 23 de Agosto de 1879, aportou a Honolulu pela mão do madeirense João Fernandes e, a partir daí, viajou pelo mundo —, é mais do que suficiente para o acolher de imediato nos nossos pequenos e sensíveis corações.



Não que isso fosse ainda absolutamente necessário: portentosas colecções de "songwriting" erudito, comovente, irónico e minimal como 69 Love Songs (1999), i (2004) — ambas com os Magnetic Fields — ou Hyacinths And Thistles (2000, dos 6ths) já aí o haviam introduzido para toda uma muito considerável eternidade e, de caminho, demonstrado também como o trabalho de um autor que admira, em simultâneo, Irving Berlin e os ABBA só pode conduzir aos melhores resultados.



Qualquer um dos álbuns acima referidos era, à sua maneira, conceptual: um, triplo, incluia três discos de 23 canções (de amor) cada; outro, obrigava-se a títulos começados pela letra "i"; e, o dos 6ths, distribuía por um sortido fino de diversos intérpretes os temas do Woody Allen da pop norte-americana. Merritt diverte-se com esses jogos e muito mais se terá divertido com a escrita, peça a peça, das quinze faixas de The Tragic Treasury, concebidas para os treze volumes de A Series Of Unfortunate Events, de Lemony Snicket (aliás, Daniel Handler, o teclista e acordeonista dos Magnetic Fields), um conjunto de "histórias de terror para crianças" (tal e qual!) sob a forma de "audiobooks", que alcançou um êxito considerável e chegou mesmo ao cinema em 2004, com realização de Brad Silberling e a participação de Jim Carrey, Jude Law e Meryl Streep. Mas sem as canções de Merritt. O que deixa razoável espaço para imaginar como poderiam ter sido os infortúnios dos orfãos Baudelaire, do conde Olaf e da tia Josephine com a banda sonora que, agora — sob a encadernação dos Gothic Archies —, podemos escutar na íntegra.



Provavelmente, um clássico do género. Porque, se títulos como "In The Reptile Room", "The World Is A Very Scary Place", "Smile! No One Cares How You Feel" ou "Walking My Gargoyle" são já consideravelmente explícitos, ninguém deverá estar muito preparado para ouvir canções de embalar onde o barítono profundo de Merritt, sobre requintadas melodias falsamente ingénuas ou francamente fúnebres, nos esclarece acerca do infinito número de formas de morrer que o mundo põe à nossa disposição, pinta cenários dignos dos Pássaros, de Hitchcock (em mais aterrador), oferece aconselhamento moral não muito ortodoxo ("Be vicious, vain and vile, everything's yours to steal if you'll just smile"), anima episódios crespusculares de envenenamento por ingestão de cogumelos e, por fim, remata tudo com a única canção que, mais seguramente do que "The End Of The Rainbow" (de Richard Thompson), será capaz de induzir ao suicídio colectivo num berçário: "Things are not what they appear, starting with a mother's love, when a helping hand comes near, it becomes an empty glove". Será, se calhar, só uma coincidência que os orfãos da história dêem pelo nome de Baudelaire. Mas do que nunca deveremos duvidar é que, com o máximo desvelo e dedicação, Stephin Merritt cultivou um frondoso jardim de flores do mal. Para ele, a nossa desmedida gratidão. (2006)

* regressando a Stephin Merritt que tão rudemente interrompido havia sido

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