AGUARELA E BOURBON
Tom Waits - Alice e Blood Money
Quando se interroga Tom Waits acerca da forma como encara a escrita de canções, ele costuma responder coisas como: «O que eu faço é escrever canções com três patas que se conseguem ter de pé sozinhas. Desenvolver uma canção em estúdio é como cortar um dedo para o fazer entrar numa luva. Corre-se sempre o risco de ficar com mais dedo do que luva. Escrever uma canção é como talhar um pau em bico. Algumas canções são feitas de madeira, outras de vidro e outras de papel. Essas, quando o vento pára, deixam de voar, termina a sua existência».
Ou, então, entrega-se à pura divagação: «As canções são grandes viajantes e vêm de sítios muito distantes e diversos. Às vezes, quando chegam, andamos em viagem. Muitas passam tão depressa que nem tempo temos de as ver. O importante é apanhá-las em voo, fabricá-las rapidamente e guardá-las bem». De vidro, de papel, de pau talhado em bico, apenas com três patas e certamente apanhadas em voo, Alice e Blood Money são as duas mais recentes colecções de canções de Tom Waits, e é indispensável que se diga desde já que estabelecem para o resto do ano um termo de comparação improvavelmente igualável.
Publicadas em simultâneo, reúnem o segundo e terceiro painéis da trilogia de óperas concebida com Robert Wilson e iniciada, em 1990, com The Black Rider. Alice, com texto de Paul Schmidt (sobre o original de Carroll), foi estreada em Dezembro de 92 em Hamburgo pelo Thalia Theater, tendo sido apresentada em Lisboa, no CCB, em 94, e Blood Money (baseado no Woyzeck, de Büchner) subiu ao palco em Novembro de 2000, no Betty Hansen Theatre, de Copenhaga. Se ambas retêm um certo «ar de família» com os ambientes musicais e de fábula poética de The Black Rider, temperados pelo alucinado cafarnaúm da sucata sonora que Waits prefere aos timbres convencionais («Trabalho de uma forma muito básica mas uso coisas que não são habitualmente vistas como instrumentos: uma cadeira arrastada pelo chão, umas boas pancadas num cofre, sinos, megafones, instrumentos defeituosos. A verdade é que eu não gosto de linhas rectas. O problema é que a maior parte dos instrumentos são quadrados e a música é sempre redonda»), talvez nunca como aqui a música se tivesse assemelhado tanto a uma aguarela sobre a qual, inadvertidamente, se entornou um copo de «bourbon».
Em Alice, por entre charangas de circo caleidoscópicas e danças de salão de ópio, predomina o tom de elegia surreal dissimuladamente erótica de que «Alice», «Lost in the Harbor» e, sobretudo, o assombroso «tone poem» de «voyeurismo» impressionista «Watch'em Disappear» serão os momentos maiores num libretto/partitura integralmente admirável. O milagre é que Blood Money lhe consiga ser, porventura, ainda superior: imprecação feroz contra a imundice do mundo e da espécie («If there's one thing you can say about mankind, there's nothing kind about man», uiva ele depois de ter explicado que «all the good in the world you can put inside a thimble and still have room for you and me»), é um carrossel de litanias infernais, weillianismos esventrados, urros das galés e estropiadas valsas agridoces que, sobre uma espiral ébria de acordeões, clarinetes, marimbas, calíopes, chamberlains e pianos de brinquedo, retrata a negro e vermelho-sangue um mundo em que «God's away on business» e invectiva «the ones that we kept in charge, killers, thieves and lawyers». Exactamente o género de música sem a qual é impossível viver. (2002)
14 April 2007
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