17 April 2007

COM SANGUE NAS UNHAS



Tom Waits - Real Gone

É dos livros: a crítica é tudo menos um exercício de objectividade. A de música não foge à regra. E, se a música é a de Tom Waits, então, entramos no domínio da total subjectividade. Pelo que a tentação de realizar o impossível — ser quase integralmente frio, documental e objectivo — se torna realmente muito grande. Será, inevitavelmente, um exercício falhado mas que, a bem da "ciência", poderá ser experimentado. Começando, por exemplo, pela estatística. É útil saber que, desde a sua estreia, em 1973, Waits possui uma discografia que inclui 19 álbuns e 8 compilações. Além desses, participou em 81 discos de outros artistas, colectâneas ou gravações temáticas. Na América e na Europa, foram-lhe dedicados 15 álbuns de homenagem contendo canções suas (no original ou traduzidas) e cerca de 200 artistas interpretaram pelo menos um tema seu. Como actor ou compositor/intérprete, colaborou numa centena de filmes, documentários e videoclips. No teatro e na dança, a sua música foi utilizada em 9 espectáculos e sobre ele existem publicados 12 livros (curiosamente, nenhum deles norte-americano). O que, em síntese, permite afirmar com um considerável grau de segurança que, na categoria "músico de culto", Tom Waits é um caso à parte.



E o que afirma ele próprio acerca da sua música que possa ser relevante para o entendimento do último álbum Real Gone? Será, decerto, o primeiro álbum onde não utiliza piano mas, desde há muito que, segundo ele, "Um piano não é senão lenha para a fogueira. Lentamente, fui-o descascando, tábua a tábua, até não restar senão metal, cordas e marfim. Todas as pessoas que tocam piano não têm senão um desejo que é vê-lo cair do décimo sétimo andar de um prédio! E a razão disso é ele ser tão pesado, estorvar tanto... Nunca podemos levá-lo connosco, é sempre um problema, acaba por nos devorar as tripas". Sobre a própria matéria das canções e o seu particular ângulo de visão, vale a pena prestar atenção a uns quantos pontos essenciais: 1) "Nas minhas canções, não procuro o lado triste e sombrio da vida mas também não sou insensível ao ponto de fechar os olhos e fingir que nada de mau sucede à minha volta. O meu trabalho é claro: contar histórias. E, de quando em quando, algo me murmura ao ouvido coisas bonitas e tristes, dramas sangrentos e histórias de veludo. Escuto-as todas e depois escolho. Em geral, prefiro as mais reais, aquelas que me fazem cravar as unhas no tampo da mesa sem dar por isso. Quando dou pelo sangue, sei que a canção é boa";



2) "Não tenho paciência para aquelas pessoas que envernizam o que escrevem. Gosto que me digam que havia pastilha elástica colada por baixo da mesa, coisas assim... Para se escrever boas canções é preciso ser-se uma espécie de detective privado. Numa canção, prefiro que um tipo me diga que foi à farmácia e não havia preservativos do que escreva que 'os rumos das nossas vidas se cruzaram na semente do universo'. Parece-me um bocado de lixo cósmico a mais"; 3)"Um bom talhante aproveita tudo o que pode da vaca. Tenho pedaços de canções por aí espalhados. Se ainda me lembrar delas, aproveito-as, senão andam-me a passear pela cabeça e acabam por se despenhar de uma ribanceira abaixo. Toda a gente gosta de trabalhar com matéria prima fresca mas não, não tenho nenhum banco de esperma"; 4) "O meu filho Casey toca bateria na minha banda. É natural. Se se cresce numa família que tem uma agência funerária, é muito provável que se venha a ser gato-pingado. É praticamente inevitável, tem-se muito mais apoio se entrarmos para o negócio da família. Eu disse-lhe, se quiseres ser astronauta não te vou poder dar muita ajuda".



Adiante-se aqui que Real Gone é todo este programa elevado à décima potência e edificado sobre uma matriz de percussão vocal/"human beatboxing" do próprio Waits, interferências de "turntablism" e radical aspereza sonora. Por fim, suspenda-se o ensaio de pseudo-objectividade: é um grande e nada fácil álbum. (2004)

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