19 April 2007

ÓPERA DOS TRÊS VINTÉNS



Tom Waits - Orphans: Brawlers, Bawlers & Bastards

O que fazer quando o autor de uma obra sobre a qual devemos escrever nos tira o pão da boca? Quero dizer, como resolver o problema de alinhavar alguma coisa acerca de Orphans, de Tom Waits, que ele próprio não tenha já despachado de forma definitiva? Reparem: para explicar como estas 54 canções (arrumadas em três discos, nas categorias Brawlers, Bawlers e Bastards) vieram ao mundo, viajaram desirmanadas e aqui aportaram, salvas do desnorte e dos maus tratos pelo seu criador, Waits conta-nos que elas são apenas aquilo que caiu para trás do fogão enquanto ele e Kathleen Brennan cozinhavam e que apenas quis facilitar a vida aos fãs que se atiram como lobos esfaimados a qualquer migalha que ele deixe esquecida sobre a mesa.



E oferece todos os detalhes sobre o modus operandi: "Quisemos que fosse como se estivéssemos a esvaziar os bolsos depois de uma noite de jogatana e gatunagem. Tinha de soar como um programa de rádio em onda-curta onde o passado faz sequência com o futuro e apanha aquelas coisas que encontramos pelo chão neste mundo, em mundo nenhum ou, talvez, no outro mundo. Juntar todo este material foi como reunir ovelhas tresmalhadas. Um bom disco deve ser como uma boneca de trapos, com lantejoulas no cabelo, conchas nas orelhas e cheia de dinheiro e rebuçados. Ou como uma carteira de senhora, com um canivete suíço e um estojo de primeiros socorros contra as mordidelas de cobra".



Deve aqui esclarecer-se que, das "ovelhas tresmalhadas" (na realidade, apenas uma fracção do rebanho à solta: no enciclopédico site TomWaitsLibrary, registam-se, pelo menos, outras 80 que ainda não entraram no redil), 24 andavam dispersas por bandas sonoras de filmes como Big Bad Love, Dead Man Walking, Sea Of Love, Pollock, The End Of Violence, Liberty Heights, Ironweed ou Bunny, haviam sido oferecidas a Johnny Cash, Teddy Edwards ou John Hammond, pastavam em sossego, em álbuns "de homenagem" como Lost In The Stars (sobre Kurt Weill) e Stay Awake: Interpretations of Vintage Disney Films, ou ruminavam versões de temas de Leadbelly, Daniel Johnston, Skip Spence, Sinatra ou Ramones. As outras 30 — entre textos de Bukowski e Kerouac cantados ou recitados, aulas de biologia exótica, sobras dos álbuns "oficiais" e produtos colaterais de experiências avulsas — nunca antes haviam sido publicadas sob nenhuma forma.



Mas todas decorrentes de um mesmo processo ("Gosto de trabalhar a música, tomar decisões acerca dela: esta canção devia ser mais estranha, aquela ali mais violenta, aquela outra não tem a côr certa. Detesto que outros tomem esse género de decisões por mim. Afastem a merda desses instrumentos para longe! Arranquem-lhes a puta da cabeça! Mijem-lhes dentro! Quando nos batemos por coisas desse género, quando a porra duma canção nos dá realmente a volta ao juízo, quando nos apetece que ela estique o pernil e nos dá gozo vê-la ali a sangrar no chão e dizer-lhe:'Tu, minha badalhoca, nunca hás-de entrar no meu álbum!' Estou sempre pronto a morrer por uma canção assim e pronto a matar por dela... Gosto de arrancar um olho a uma canção que não presta e enxertá-lo noutra, gosto de canibalizar a música. Quando fazemos um álbum, escrevem-se cinquenta canções e, inevitavelmente, algumas ficam inacabadas. São apenas o pâncreas, o estômago ou os lábios que utilizaremos noutra"), montadas como esculturas feitas de sucata resgatada ao ferro-velho e soldada ao tronco de uma roseira ressequida em chamas.



Em versão Brawlers ("arruaceiras"— blues de Howlin' Wolf com cio, Beefheart crucificado numa teia de aranha, Robert Johnson sodomizando o demo, Dylan de faca na liga), Bawlers ("gritadas"— leia-se ao contrário: cabaret das luas de Júpiter, lirismo irlandês no bordel, country segundo a regra dos papiros do Nilo) ou Bastards (as "enjeitadas" que nenhuma taxonomia conhecida aceitará acolher) e umbilicalmente dependentes do processo de comunicação telepática com uma quadrilha de músicos — mais de 60, no total — que, caso Tom Waits lhes proponha a encenação de um ritual vudu no gueto judeu de Quioto, nem por um segundo pestanejam.



No fim de contas, apenas a consagração derradeira de um glorioso fado de autor de óperas de mendigos e de uma faustosa transcendência de vira-lata, assente numa estética ("Sou a favor de tudo o que faça uma cultura andar para a frente. Recentemente, comi sushi no México. O tipo perguntou-me se eu o queria com queijo. É a isto que eu chamo uma cultura viva!") e nos andrajosos farrapos de uma ética (questionário de Proust, para a "Vanity Fair", de Novembro de 2004: "P - Qual a virtude mais sobrevalorizada? R - A honestidade"; "P - Em que ocasiões mente? R - Quem precisa de uma ocasião?"; "P - Qual a sua característica mais forte? R - A capacidade para discutir em profundidade um livro que nunca li").
Façam-lhe uma estátua. Ele, depois, pinta-a de verde-alface. (2006)

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