ESCUTAR A ESCRITA
Identidades, poetas, Amin Maalouf, lobulophone, uma trilogia no seu tomo inaugural, fado/não fado/pós-fado, imagens de telemóvel, maracujás do Alasca e giestas de Singapura. É destas matérias que se faz Não Sou Daqui, o quinto álbum de Amélia Muge, outro “espaço de fronteira” na canção moderna portuguesa para o qual ela sugere duas ou três chaves de entrada.
Quando se dá a um álbum um título como Não Sou Daqui, isso autoriza logo uma série de interpretações possíveis: “não sou deste mundo”, “não sou de Portugal”, “não sou deste tempo”, “não sou do lugar onde me querem arrumar”... quis dizer exactamente o quê?
Ao dizer “não sou daqui”, estou a dizer outra verdade: estou lá. Em última análise, podemos ir parar a outro grande chavão: a identidade é sempre algo em trânsito. Também se pode ir às questões artísticas e reflectir se, num mercado cultural em nos situamos um pouco à margem, isso significa que não estamos nele. Não só estamos como estamos com um estatuto que varia entre a exclusão e a desigualdade (risos).
Essa questão das identidades está bastante entranhada em todo o disco: desde a primeira canção (“Sete Portas Tenho Em Casa”) onde baralha e confunde marcas e referências de lugares diversos até à citação das Identidades Assassinas, do Amin Maalouf, na contracapa do “booklet”: “se os fanáticos de todas as cores conseguem tão facilmente impor-se como os defensores da identidade, é porque a concepção ‘tribal’ da identidade que prevalece ainda no mundo inteiro favorece tal deriva”... aliás, dizer “não sou daqui” não é largar uma identidade e procurar outra?
Ou, então, dizer que, para haver um espaço de todos, esse espaço não será de ninguém. Já não será uma soma de culturas e identidades mas outra coisa. Habitualmente, as identidades são reservadas para os humanos, nunca se diz que um livro tem uma identidade, tem um título. E, muitas vezes, passa-se o contrário: há certos livros que têm muito mais identidade do que muitas pessoas que são apenas um título. Neste disco, essa reflexão será muito mais evidente porque parto de uma ideia de canção da qual procuro aperceber-me da identidade. E, ao aperceber-me de que aí já existe, no mínimo, um espaço de fronteira, de hibridação ou de mestiçagem, ficam muito mais nítidos esses conceitos através dos quais pensamos a identidade.
É também por força desses automatismos identitários que, por mais áreas diferentes que a sua música atravesse, haverá sempre quem não desista de a “arrumar” na gavetinha da “música popular portuguesa”?
O “arrumar”, em princípio, não faz mal. O problema é o sentido que se lhe atribui. Eu própria, quando digo que estou a iniciar uma trilogia, estou a arrumar-me nalgumas gavetas. E, neste disco, predispus-me a arrumar-me naquela a que chamei a da “ideia de canção”. Andar com a casa sempre de pantanas também acumula muito lixo... Agora, se isso significa ficar preso dentro de uma gaveta de onde se está proibido de sair, é outra coisa completamente distinta. O problema é que não podemos transformar a gaveta do nosso quarto na gaveta de uma nação que é o que, na maioria das vezes, acontece.
O que a fez conceber essa trilogia (de que o segundo tomo será sobre a música popular tradicional e o terceiro se dedicará às relações entre linguagem e tecnologia) de modo autónomo relativamente aos álbuns anteriores que passavam todos eles também por esses mesmos caminhos?
Essas três coisas – a canção, a música da tradição e a marca da tecnologia no lado mais experimental da minha música –, para mim, estão sempre presentes, são como que o meu tripé de criação. Mas cada um desses discos irá ter o seu nome, o seu rosto. Eu sou um produto de várias coisas. Serão três chaves de entrada para diversas áreas que me interessam. No fim, continuará a ser apenas... “múgica” (risos).
A questão da identidade tem também a ver com a sua relação de toca-e-foge com o fado. Mas, neste álbum, no “Fadunchinho”, apesar de ser através das palavras da Hélia Correia, declara “amigos, rendi-me ao fado e o fado também a mim se rendeu”...
Alguém, em Portugal, é capaz de recusar que está antes do fado ou depois dele? Se calhar, na música tradicional, encontro coisas que são fado antes do fado. E, em muitos dos cantores de fado que têm a ver comigo (o Camané, a Mísia, a Mafalda Arnauth), encontro outras que já são pós-fado. Na tal casa que, convencionalmente, se chama fado e se vê como “a verdadeira canção da alma portuguesa”, eu sinto logo que não sou dali. Nem sequer nasci cá, não tive pais fadistas, não sou da Mouraria... para muitos será, talvez, um lugar de refúgio. Se eu pegasse num xaile, me vestisse de preto, cantasse fados da Amália e dissesse que era fadista, se calhar, ninguém ia contestar: que bom, era uma sem-abrigo e tinha encontrado uma casa que era minha! Não foi esse o meu caminho mas isso não quer dizer que não tenha influências. É, muitas vezes, surpreendente sermos tanto aquilo que pensamos que não somos. Não sou dali mas, de vez em quando, estou lá.
Tanto no booklet como na componente DVD do disco, utilizou uma captação de imagens que se poderia classificar de “baixa-fidelidade”, através do telemóvel. Porquê ir por aí em vez de optar por altas definições e tecnologias “state of the art”?
Se eu não tivesse vivido em Moçambique no período a seguir à independência, talvez nunca tivesse compreendido como a escassez de recursos não implica necessariamente o bloqueio do pensamento. Não é por se usar um meio altamente sofisticado que as ideias que ele transporta são forçosamente grande coisa. Isto começou por ser um desafio e também, lá está, uma preparação para o outro disco. Nós vamos varrendo tecnologias que deixam de ser encaradas como viáveis só porque apareceram outras. Se calhar, os potenciais do quadro preto nunca foram completamente explorados... como se o meio estivesse obrigatoriamente agarrado ao desenvolvimento das ideias. Aliás, também, nos desenhos e grafismos que surgem no “booklet”, exponho um pouco o meu processo de criação: muitas vezes, antes de perceber que sonoridades saem de um poema, desenho as palavras, decomponho-as, são bússolas, mapas de entrada nesse universo. O do “Escutar Caetano”, por exemplo, é um bocado a ideia de como se escuta uma escrita. Foi depois disso que pedi a uma amiga que faz uns ruídos fantásticos com a orelha que gravasse esses sons do “lobulophone” que samplámos e que é um contraponto deste mapa que aqui está. Aprender a ouvir, é aprender a escutar o ruído e o silêncio e, depois, as outras coisas. Estamos sempre entre estes dois limites. (2007)
No comments:
Post a Comment