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06 July 2016

OLDE ENGLAND


Arthur Mee (1875-1943), jornalista, escritor e pedagogo inglês, foi o autor da obra em 42 volumes, The King's England – um guia exaustivo cobrindo 10,000 cidades e aldeias –, na qual criou o conceito de “thankful villages”: aqueles locais de onde todos os homens que partiram para combater na primeira Guerra Mundial regressaram sãos e salvos após o Armistício. Em Let England Shake, PJ Harvey já se havia debruçado sobre a selvagem carnificina, assassina de 16 milhões, e cujos incontáveis horrores Wilfred Owen, em "Dulce et Decorum Est", gravou com a cor do sangue: “If you could hear, at every jolt, the blood come gargling from the froth-corrupted lungs, bitter as the cud of vile, incurable sores on innocent tongues, my friend, you would not tell with such high zest to children ardent for some desperate glory, the old lie: Dulce et decorum est pro patria mori. Darren Hayman, logo após a conclusão do óptimo álbum do ano passado, Chants For Socialists (sobre textos de William Morris, romancista, poeta e iniciador do movimento Arts & Crafts no final do século XIX), em conversa com o guitarrista, Ian Button (Death In Vegas, Thashing Doves), teve conhecimento da existência das “thankful villages”, pretexto instantâneo para a concepção de novo disco.

Strethall, Essex (Thankful Villages/IV)

A intenção não era compor sobre a guerra (embora, inevitavelmente, aqui e ali, ela surja) mas, tirando partido da definição de Mee, ter um ponto de partida para visitar 54 lugarejos perdidos da Olde England: “Sou agorafóbico mas interessa-me particularmente a ideia de que a música criada em determinados lugares leva consigo algo deles. Tanto desejei ser bem acolhido, sentar-me e conversar com as pessoas como mover-me como um fantasma, silencioso e invisível. Algumas visitas foram planeadas, outras completamente às cegas em busca de uma reacção imediata à paisagem e ao local”. Foi assim que, em Thankful Villages Vol.1, espécie de From Gardens Where We Feel Secure mais rural e num registo algures entre "field report" e "field recording", Hayman procurou um fio narrativo entre as experiências vividas nos 18 primeiros locais, gravou o vento ou a leitura de velhas cartas e poemas, pelo meio, inventou esboços de canções (e, tal como fizera PJ Harvey, uma sequência de videoclips paralela) e, enfim, auscultou o coração daquela antiga e amável Inglaterra que não confia na Europa. 

20 November 2018

ARMISTÍCIO


Quando menos se espera, volta e meia, surgem em Portugal as ideias mais surpreendentes. Por exemplo – antecipando de uma semana a celebração, em Paris, do Armistício da I Guerra Mundial –, festejar a paz que pôs termo à selvática carnificina inter-imperialista (na qual, rasgando novos horizontes para a historiografia, o comandante supremo das Forças Armadas portuguesas conseguiu enxergar o quadro quase hippie de uma luta "pela compreensão contra o ódio, pela liberdade contra a opressão, pela justiça contra a iniquidade, pela Europa aberta contra a Europa fechada") com... “o maior desfile militar em 100 anos”! Leram bem: festejar a paz = desfile militar. O maior em 100 anos. Tantos quantos os do Armistício. Se, para um estudo da natureza profunda da mente militar, a literatura recomendada continua a ser O Bom Soldado Švejk, de Jaroslav Hašek, que tem lugar, justamente, durante a guerra de 1914-18 – preste-se particular atenção à personagem do alferes Konrad Dauerling –, evocar de forma decente e enxuta as memórias desse tempo é o que, desde 2016, Darren Hayman tem andado a fazer com o tríptico Thankful Villages de que é agora publicado o terceiro e último volume. 

Wysall, Nottinghamshire (Thankful Villages/XXVII)

Não há aqui monumentos aos mártires nem epopeias heróicas: apenas um inventário das 54 “aldeias gratas” por todos os seus soldados terem regressado vivos a casa. Hayman visitou-as uma a uma e, em cada uma delas, realizou um video e uma aguarela, conversou com os residentes locais, registou entrevistas, histórias e "field recordings", e criou atmosferas sonoras e canções "site specific". Nas últimas 19 etapas do Volume 3, em Minting, no Lincolnshire, um gato invadiu-lhe o carro e recusou-se a sair enquanto David, professor da escola da terra, músico, e detectorista amador foi com ele desenterrar moedas chinesas antigas; chega a Ousby, Cumberland, onde um cavalo o olha fixamente, um cão lhe ladra, e recebe a notícia do assassinato da deputada trabalhista Jo Cox por um extremista de direita, a um mês do referendo do Brexit; no dia a seguir à vitória de Trump nos EUA, em Wysall, Nottinghamshire, dão-lhe a ver um filme das irmãs “Miss Evans” sobre a vida da aldeia e o último dia da escola, quando Mrs. Kettle era a professora; e, Sally Beers, um dos 48 habitantes de Teigh, Rutland County (pano de fundo musical cortesia de Simon Fisher Turner), conta-lhe a história do avô, o reverendo Henry Tibbs, preso por ser simpatizante nazi. Uma miniatural história secreta da Grã Bretanha que vale por mil desfiles militares.

23 August 2017

PÉRIPLO


Em Maplebeck, no Nottinghamshire, Darren Hayman ouviu contar a história do dono de um pub que, no final da noite, deixava o porco de estimação beber a cerveja que restava no fundo dos barris e encontrou-se com Judith que limpava as lápides do cemitério local com uma escova de dentes. Em Shapwick, Somerset, descobriu folhas de árvores presas aos troncos com pioneses coloridos. À entrada de Cromwell, um local saudou-o: “I’m Dennis, but they all call me Bill”. Num banco de jardim de Norton Le Clay, no Yorkshire, viu inscrito o nome de uma refugiada belga que para lá emigrara durante a guerra e, sobre ela, escreveu uma canção (“Come all you refugees and strays, come all you immigrants and waifs, come to our house and stay, you’re welcome”). Há aldeias tão pequenas que, mal se entra, já se está sair. Mas, em Tellisford, à beira de uma represa sobre o rio Frome, deu com um piquenique de jovens, que se banhavam no rio. Gravou-lhes as gargalhadas, o correr das águas e os mergulhos. East Norton parecia habitada por fantasmas e, no pub de Nether Kellet, havia a fotografia de uma equipa de futebol feminino do tempo da guerra. 

Viajou com Judy Dyble – a antecessora de Sandy Denny nos Fairport Convention – e a cadela Molly até Upper Slaughter, no Gloucestershire, e, após a sopa comunitária da tarde, na margem do Eye, escutou-a a dedilhar na auto-harpa um devaneio sobre a passagem do tempo. Wooley e Stretton En Le Field fizeram-no pensar em canções do espólio da English Folk and Dance Society que já tinha encontrado na Cecil Sharp House. No abrigo de uma paragem de camionetas, em Woodend (em cujo céu três aviões colidiram durante a segunda guerra mundial), alinhavou uma música que quase o fez reencarnar na pele de Ray Davies. Olhou para Chantry e teve a sensação de que era a aldeia que o observava a ele. É o "trailer" possível de Thankful Villages Vol. 2, segundo painel do tríptico de Darren Hayman iniciado no ano passado, dedicado a um périplo pelas 54 aldeias inglesas nas quais todos os homens que partiram para as trincheiras na guerra de 14/18 regressaram vivos à terra. Mais belíssimo documentário de rádio (e colecção de videos) com sonoplastia ficcionalmente sofisticada do que propriamente um convencional álbum de canções, as dezoito "thankful villages" que faltam ficam prometidas para o terceiro volume, no próximo ano.

28 August 2018

CONHECER O SEGREDO 


“First thought, best thought” era o princípio orientador da poesia de Allen Ginsberg: dar livre curso ao pensamento “espontâneo” sem necessidade de o filtrar através de disciplinas ou formas estéticas. David Tattersall, dos Wave Pictures, prefere citar Neil Young – “The more you think, the more you stink” – e, a propósito do último album, Brushes With Happines, acrescenta: “Gravámo-lo todo, ao vivo, numa pequena sala, durante uma noite de Janeiro, até de madrugada. Escutá-lo é como estar presente numa cerimónia, conduz-nos até aquele lugar. É como ser-nos dado a conhecer um segredo que emana de um grupo de pessoas num determinado ponto, no tempo e no espaço. Imensas bandas alegam ter gravado o seu Tonight’s The Night ou Astral Weeks, um álbum especial registado naquelas raras circunstâncias noturnas, livres de pressões, uma colecção de jams inspiradas. Na verdade, não foi isso que aconteceu. Passaram eternidades a aperfeiçoá-lo. Este nosso é autêntico. Uma improvisação genuinamente embriagada” (no original, em inglês, “a genuine shitfaced improvisation” soa bastante mais realista). 



O método foi, aliás, um pouco mais radical: quando entraram na “pequena sala”, existiam apenas os textos de David para as nove canções e nem um compasso de música. Tattersall (guitarra), Franic Rozycki (baixo) e Jonny Helm (bateria) teriam de se dedicar à descoberta das peças sonoras que faltavam ao "puzzle", sob a acção supostamente benfazeja dos estimulantes envolvidos. Já com Beer In The Breakers (2011) o plano fora idêntico: gravar num espaço “não muito maior do que uma mesa de sala de jantar”, com material emprestado por Darren Hayman (outra carta fora do baralho, responsável pela série em curso Thankful Villages), sem recorrer a "multitracking" nem "overdubs", em uma ou duas "takes". Desta vez, segundo a lenda, foi tudo à primeira "take". Publique-se a lenda. Porque, tenha acontecido rigorosamente assim ou não, o que importa é que a banda que, desde 2003, após dezasseis óptimos álbuns (e dezenas de colaborações) sem alguma vez ter ultrapassado a condição de “best kept secret”, produziu mais outro clássico confidencial de "words & music", instantâneos (“The little window that I look out of has a pleasing view, electricity pylons seem to be friendly with the trees”) e observações (“There’s something to be learnt from this burnt match”), aparições de Django Reinhardt, Jerry Lee Lewis e Peter Green, e a sombra, só a sombra dos blues.