06 February 2018

CONTAMINAR, SIM


Ela não o diz, uma vez, por desabafo ocasional. Sistematicamente, em todas as entrevistas, Nicola Kearey faz questão de declarar “Não gosto de música folk”. Coisa aparentemente contraditória com o facto de fazer parte de uma banda – Stick In The Wheel – que, desde o primeiro álbum, From Here (2015), tem sido vista enquanto potencial farol de um – mais um... – “folk revival”. Kearey (e o guitarrista Ian Carter), no entanto, insistem em explicar o seu ponto de vista à “Uncut”: “A forma como, actualmente, a folk é encarada foi determinada pelos recolectores da época vitoriana, quando essa era uma ocupação das classes superiores que pretendiam preservar a música das pessoas comuns do grande império. Privilegiavam as canções rurais, livres da contaminação das gentes urbanas. E dos imigrantes. Andavam à procura de 'idiots savants' e organizaram as recolhas de modo a confirmar a sua narrativa. Acabou por ser uma construção social – canções de trabalhadores vistas pelo prisma do coleccionador de classe média – bastante problemática”



Contaminação é, justamente, aquilo que os Stick In The Wheel menos receiam. Oriundos de um nicho ecológico que vai das "guitar bands" ao que Carter designa por “the continuum from jungle to dubstep to grime”, a abertura à folk coincidiu com o momento em que o avassalador processo de gentrificação dos bairros populares londrinos atingiu a sua zona de origem, Walthamstow: “Libertar a folk do estatuto de peça de museu, teve também muito a ver com o interesse pela história do quotidiano operário, das nossas raízes, podemos aprender imenso com as grandes histórias da música tadicional inglesa. Mas a relação dos ingleses com a sua cultura é estranha, complicada e carregada de perigos: o nacionalismo, o racismo, a 'political correctness'”. Follow Them True é, entao, uma extraordinária reflexão em treze capítulos – “sobre ciclos e rituais, o poder de nos transformarmos e ao mundo, a repetição do passado, fantasmas e morte, terras e lugares, ladrões e mendigos, uma declaração de comprometimento, uma ameaça e uma promessa: o protesto é implícito, faz parte da nossa própria natureza” –, assente na rude beleza das poderosas harmonias vocais, no espírito de Eliza Doolittle que paira sobre as vogais de Nicola e no sólido e tenso travejamento de guitarra, violino, flauta, acordeão, bateria e electrónica.

4 comments:

Anonymous said...

Não há dúvida! Depois de ouvir Stick In The Wheel e este "Follow Them True" é caso para concluir que o capitalismo é uma fénix que renasce a cada crise...

Tony Almeida

João Lisboa said...

Depois de comer um bacalhau à Gomes de Sá, também concluo que a Teoria das Cordas continua a ter lacunas que deverão ser eliminadas.

Anonymous said...

Depois de comer um bacalhau à Zé do Pipo, também concluo que estou completamente contra o pensamento marxista tradicional, que achava que o capitalismo era uma espécie de progresso que tinha que ser substituído pelo socialismo, uma espécie de capitalismo melhor.

Ao darmos guarida intelectual ou espiritual - de forma implícita ou por omissão - à geringonça, contribuímos, ao fim ao cabo, para a sua manutenção.

Ou seja, também contribuímos para o tal 'capitalismo melhor', missa, missal e missão dos tempos políticos cimeiros que correm no rectângulo.

Tony Almeida

João Lisboa said...

Se a geringonça é "marxismo tradicional" - seja lá isso o que for - a minha pila é um assobio (estou a citar um marxista - não sei se "tradicional" - anónimo do século XX).

O que os Stick In The Wheel têm a ver com isto é que ainda não percebi.