04 November 2007

A MISSINHA





Chamem-me paranóico. Mas ninguém me tira da cabeça que a culpa é do Devendra. É evidente que Patti Smith – personagem de transição entre a tolice cósmica hippie e o escarro punk – nunca desdenhou aquela malfadada tendenciazinha para o grande gesto messiânico, para os olhos revirados na direcção do infinito e para a demagogia beatamente democrática. No contexto do miolo dos anos 70, porém, a sua costela evangélica de Jim Morrison-com-(alguns)-estrogénios ainda passava relativamente despercebida e a reputação de “earth mother” da coisa-punk não sofreu demasiadas beliscaduras. Na etapa da “segunda vinda” de Patti (verdadeiramente iniciada, em 1996, com Gone Again, embora Dream Of Life, de 1988, fosse já uma espécie de sinal profético), no entanto, tudo começou a tornar-se um bocadinho insuportável, o que o concerto do passado domingo no Coliseu de Lisboa confirmou da pior maneira. E é aqui que a criatura Banhart – sem a menor dúvida, o filho que Patti Smith, por obra e graça de um espírito xamânico qualquer, sempre deverá ter sonhado engendrar no seu magro ventre – terá de ser chamada a depôr: não andasse a atmosfera tão contaminada pelos miasmas de “paz, amor e enrolamaíum” do bando de maltrapilhos, colegas, amigos e penduras do travesti barbudo e muito menos fácil seria que cerimónias da mais pura matriz-IURD como a que teve lugar nas Portas de Santo Antão pudessem ocorrer. Sim, sim, não exagero: se tudo terá verdadeiramente começado com a cantilena-13-de-Maio de “Ghost Dance”, o que veio a seguir foi, indiscutivelmente, da ordem da missinha.



As mãos frementes de devoção parkinsónica voltadas para o céu despertando o ardor dos fiéis, o passeio pedestre pelo meio do povo com cumprimento ritual – porque, não esquecer, “Ela é um(a) de nós!” (ver “visita às feiras em período eleitoral”) –, as invocações das almas que já partiram do nosso seio (e lá se foi à vida “Smells Like Teen Spirit”, praticamente a única versão decente do último Twelve), a cópula mística com solo de guitarra, em “pas-de-deux” tribal com Lenny Kaye, os apelos à insureição da comunidade dos crentes contra O Inimigo, nada foi esquecido do que consta no manual da liturgia. E, oh meus amigos, se funciona! No “templo maior” de Chelas, na Cova da Iria ou no Coliseu, basta passar a mão pelo pêlo às massas que elas ronronam de felicidade. No caso, com preocupações “site specific”: de 20 em 20 minutos, Portugal, Fernando Pessoa ou Lisboa (em “Gloria”, o G.L.O.R.I.A. converteu-se em L.I.S.B.O.A. – básicozinho mas comprovadamente eficaz) tinham de ser chamados à conversa, entre duas elegantes parabólicas de cuspo pelo ar (em que, simultaneamente, se evocava a “credibilidade punk” e se ungia os devotos), um gatinhar muito rock’n’roll da boca de cena até à banda (plamordedeus… a senhora já fez sessenta anos!) e outro regresso à plateia, na qualidade de “cheer-leader” do momento-garage-Lenny Kaye. Não sei que vos diga, mas foi um êxito. (2007)

8 comments:

Anonymous said...

paranóico.

João Lisboa said...

Pronto. Então, confirma-se.

Anonymous said...
This comment has been removed by the author.
Anonymous said...

Devendra Banhart pintado por João Lisboa

João Lisboa said...

O gajo é bom!...

ND said...

este é um daqueles textos que se devem ler em voz alta (haverá outros)e depois da última linha se formos capazes de abrir o link que o manuel deixou e tivermos fôlego ainda podemos ouvir-nos: dá-le ao centro!

menina alice said...

:D:D:D:D:D

"basta passar a mão pelo pêlo às massas que elas ronronam de felicidade" - Já estás com o teu imaginário todo felinizado, tsk, tsk, tsk...

João Lisboa said...

Miau.