NO MUNDO REAL
Chuchurumel - Posta Restante
David Fonseca - Dreams In Colour
Clã - Cintura
Jorge Palma - Voo Nocturno
Um antigo refrão da história de quase todas as coisas nacionais ensinou-nos que, de um modo geral, tudo tende a chegar a Portugal com atraso, atenuando, assim, o potencial positivo do que é bom e agravando o negativo do que é mau. Actualmente, porém, temos de reconhecer que, por efeito da mundialização instantânea da informação, o mal já nos chega na hora, embora o bem – em consequência da inércia entretanto instalada – ainda vá levando o seu tempito. Trocando por miúdos, para o que agora interessa: se o início do estertor final da indústria discográfica global, tal como nos habituámos a conhecê-la, não provocou imediatos abalos sísmicos entre nós, agora que nos aproximamos do apocalíptico desfecho, o nosso pequeno e paroquial céu está a segundos de nos cair sobre a cabeça. E, por muito pequeno que seja, vai doer.
Paradoxalmente, bastante mais do que outros bem maiores. Porque, se uma das soluções para compensar a gigantesca fatia do mercado discográfico (brevemente, a totalidade) que o “download” livre de ficheiros na Internet diariamente devora se poderá encontrar no reforço, alargamento (e encarecimento) do circuito de concertos, num espaço geográfico limitado como o português, onde uma tournée “nacional” com condições e rentabilidade mínimas se esgota numa mão-cheia de datas, o futuro não augura, realmente, nada de bom. Acrescente-se ao cenário a velha e familiar “crise” que, atavicamente, faz questão de nos fazer companhia e não haverá baldes de tinta negra que cheguem para o pintar. Continuam a existir discos “de ouro” e “platina” (a “prata”, por razões de decoro, foi discreta e caridosamente eutanasiada) cunhados naquela liga metálica pouco nobre que Christopher Pinchbeck inventou, mas nem a melhor cosmética do desastre o poderá dissimilar por muito tempo. Sobra a hipótese da internacionalização que, até agora, tem estado quase exclusivamente reservada ao fado (e expressões afins, mais ou menos “étnicas”) e a algumas margens “experimentais”/”de vanguarda”. E, mesmo aí, não a todos, frequentemente, não àqueles que verdadeiramente o mereceriam e, em todos os casos, numa dimensão a muitos anos-luz de distância de um estatuto razoavelmente equiparável ao de – para dar apenas um exemplo oriundo da “liga dos pequenos e médios países” do universo musical – Björk.
Não carregando demasiado no tom aterrador de profecia bíblica, estes poderão ser alguns dos últimos discos de música portuguesa publicados segundo as regras da velha ordem editorial – tanto os que ainda se abrigam sob a sombra de “majors” em acelerado processo de retirada estratégica como os que recorrem a estruturas “independentes”. O que, especialmente em versão lusa, poderá ser a nova ordem, é tudo menos claro. Mas, enquanto não se clarifica, parece-me sensato que, caso o tenham, os músicos portugueses não larguem o seu “day job”. Posta Restante, dos Chuchurumel, por exemplo: mesmo tendo em conta que Sexto Sentido, da Sétima Legião, ou toda a discografia dos Gaiteiros de Lisboa e de Amélia Muge estabeleceram um elevado termo de comparação relativamente aos modos contemporaneos de lidar com a tradição musical popular, é um magnífico álbum onde os materiais sonoros – encarados quase como “found sounds” montados de modo sabiamente eisensteiniano ou reformulados e transfigurados tecnológicamente e no sentido de uma reavaliação propriamente musical – transportam instantaneamente para o presente as marcas de uma memória que, escutada assim, nunca nos ocorreria qualificar como “arqueológica”. Todas estas “cartas” (sob a forma de mazurkas, xotiças, romances ou cantigas de cego pedinte em registo mutante) exigem ser escutadas por ouvidos de hoje mas, como garantir-lhes a sobrevivência para além da micro-cena “folk” nacional?
Muito mais dificilmente isso acontecerá com Dreams In Colour, de David Fonseca: internamente, decerto deixará a perder de vista nas listas de vendas o disco dos Chuchurumel – e 20 mil magras cópias já inscrevem uma platina jeitosa no currículo – mas não será pelo facto de se exprimir em inglês (variante “Officer Crabtree”, de Alô, Alô, é verdade) que esta pop cada vez mais ligeira, orelhuda e próxima de uma rítmica e instrumentação de pedagogia-Orff infantil poderá dar um passo para lá de Elvas. Assobio-Primavera-Verão (que foste tu fazer, Andrew Bird?), pose “indie”-mas-sem-complexos e tudo, trata-se apenas de “produto local” e, como tal, sujeito à nova lei implacável que, actualmente, impede que um êxito como o dos Silence 4 se volte mais alguma vez a repetir.
Cintura, dos Clã – que deverão passar a ser considerados como a mais legítima descendência de Sérgio Godinho (com quem, não por acidente, já, em várias oportunidades, cruzaram caminhos) no pequeno mundo da pop lusófona – coloca a música do grupo num patamar menos tenso que o óptimo Rosa Carne (2004), areja-a e, sem abrir mão da complexidade da arquitectura anterior, teria tudo para poder, finalmente, projectar a banda de Manuela Azevedo para uma visibilidade que a sua excelente meia dúzia de álbuns já absolutamente justifica. Desde que, naturalmente, o seu núcleo de fãs assinasse uma espécie de juramento de sangue segundo o qual, nunca por nunca, cometeria o pecado de o adquirir por outros meios que não os legalmente previstos…
... justamente o mesmo tipo de pacto que Jorge Palma poderia propor aos seus (mas ele tem o terrível problema de ser transgeracional…) para que Voo Nocturno – provavelmente, a sua colecção de canções onde, de forma mais exacta e consistente, faz coincidir o sentido de textos e melodia, embora um ou outro excesso “rockista” se dispensasse – não tivesse demasiados problemas de tráfego aéreo. O que, no mundo real, não parece estar a ser tarefa simples. (2007)
04 November 2007
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