18 June 2019

UM TRUQUE DE MAGIA

  
A meio da canção de abertura dos concertos de 2017 e 2018, “Springsteen On Broadway” – "Growin’ Up", do album inicial de 1973, Greetings From Asbury Park, NJ –, Bruce faz uma pausa e confessa: “Nunca tive um emprego sério em toda a minha vida. Nunca trabalhei das 9 às 5. Nunca trabalhei 5 dias por semana. Até agora”. E, por entre o riso do público, continua: “Nunca estive no interior de uma fábrica e, no entanto, não tenho escrito sobre outra coisa. À vossa frente, está um homem que teve um imenso e absurdo sucesso escrevendo acerca daquilo sobre que nunca teve a mínima experiência pessoal. Inventei tudo. É para verem quão bom eu sou”. Mais à frente, interrompendo "My Father’s House" (de Nebraska, 1982), acrescenta: “Escolhi a voz do meu pai. Vesti roupas de operário porque eram as roupas do meu pai”. E a personagem que “escreveu 'Racing In The Street’ quando não sabia ainda sequer conduzir” conta um sonho que teve pouco após a morte do pai: durante um concerto perante milhares de fãs, foge do palco e ajoelha perante ele, toca-lhe no braço e diz: “Olha, pai, vês aquele tipo ali em cima? És tu, como eu te vejo”. Na autobiografia, Born To Run (2016), pegara no mesmo assunto sob outro ângulo: “Um concerto, por muito bom que seja, por mais autênticas que as emoções sejam, por mais fisicamente intenso e inspirador que eu deseje torná-lo, é ficção, teatro, uma criação. Não é a realidade”



Será, então, verdade que Springsteen, o "working-class hero" da América proletária, não passe, afinal, de um “fingido” (como ele diz, “a phony”)? O modo exacto como o diz, porém, permite ver um pouco mais longe: “Claro que eu sabia estar a fingir – é isso que faz um artista – mas sabia também que era a coisa mais autêntica que já tinham visto”. Se calhar, em versão "blue collar" de New Jersey, aquele jogo de sombras pessoano do poeta e do fingidor. Ou, como o viu Greil Marcus, “o público é convidado para uma rêverie encenada e com um guião mas, mesmo que quem esteja presente já saiba aquilo de que está à espera, nunca há a sensação de se tratar de algo enlatado, cronometrado ou, sequer, ensaiado. Não parece espontâneo mas reflectido, como se qualquer situação pudesse, em qualquer momento, ser resolvida de modo diferente por Springsteen”.



Talvez nunca como em Western Stars Bruce Springsteen tenha levado tão longe essa tensão entre “artifício” e “autenticidade”, entre “a dor que finge tão completamente” e “a dor que deveras sente”. Born To Run (1975), Darkness On The Edge Of Town (1978), The River (1980), Nebraska (1982), The Ghost Of Tom Joad (1995), ou Devils & Dust (2005) foram, sem dúvida, momentos de exaltação dos derradeiros escombros do “sonho americano” – tal como ele se foi transformando ao longo das 7 décadas de vida de Springsteen –, mais epicamente cinematográficos ou num resguardado registo “de câmara”, mas todos em reconhecível sintonia musical com aquilo que, “naturalmente”, seria o idioma aceite. Em Western Stars, porém, tudo muda. Se Bruce, tal como afirmou em conversa recente com Martin Scorsese, deseja “continuar a celebrar e honrar a beleza e a poesia do meu país”, acima de tudo, não abdica de “continuar a ser um bom ‘storyteller’ – foi essa a promessa que, quando jovem, fiz a mim mesmo. Levava o meu divertimento muito a sério. Continuo a acreditar ser esse o serviço que devo prestar: esta minha oração longa e ruidosa. O meu truque de magia”. 

 
"There Goes My Miracle"
 
E, desta vez, o “truque de magia” foi deliberadamente artificioso: ir respigar as memórias daquela música que escutava enquanto adolescente – Glen Campbell, Jimmy Webb, Burt Bacharach, Dion and the Belmonts, Harry Nilson – e, em torno delas, sem verdadeiramente cair na armadilha do exercício de estilo, edificar um álbum magnífico mas que se assemelha muito pouco a um disco “de Bruce Springsteen”. Sim, os protagonistas de cada canção continuam a ser encontrados nas trevas à porta das cidades – o actor secundário que “once was shot by John Wayne, that one scene's bought me a thousand drinks”; o duplo que recorda a actriz que conheceu “on the set of this B picture she made, she liked her guys a little greasy and 'neath her pay grade", e exibe “two pins in my ankle and a busted collarbone, a steel rod in my leg, but it walks me home”; o fulano que murmura “You fall in love with lonely, you end up that way” – mas, agora, emoldurados por sumptuosas orquestrações, como se Aaron Copland, Max Steiner ou Alfred Newman, ferreamente disciplinados por Phil Spector (exemplo máximo: "There Goes My Miracle"), tivessem ressuscitado em glória.

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