21 December 2010

RELÍQUIAS DAS TREVAS
















Bruce Springsteen - The Promise: The Darkness On The Edge Of Town Story






















Bob Dylan - The Witmark Demos 1962-1964 (The Bootleg Series Vol. 9)















Bob Dylan - The Original Mono Recordings

Ao ser abalroado pelo talento do jovem autor de Greetings From Asbury Park, NJ, mo início da década de 70 do século passado, Jon Landau bem se terá esforçado para proclamar ao universo que “tinha visto o futuro do rock’n’roll e ele se chamava Bruce Springsteen”. A frase poderá ter passado a ostentar o seu © mas, ainda durante alguns anos, não serviu de muito: o que, à viva força, muitos pretendiam acreditar era que estavam perante “o novo Bob Dylan”. Tal obssessão, perante as galopantes evidências de que Dylan era Dylan e Springsteen era Springsteen, acabou por se ir dissipando mas, nessa matéria – a genealogia de Bruce – ninguém terá apresentado a solução de forma mais exacta do que o jornalista e figura da televisão, Jon Stewart, quando, há um ano, na Casa Branca, foram atribuídas a Springsteen as Kennedy Center Honors (distinção por uma carreira em prol da cultura americana): “Não sou crítico de música. Nem historiador nem arquivista. Não sou capaz de vos dizer qual o lugar de Bruce Springsteen no panteão do cancioneiro americano. Não conseguiria iluminar o contexto do seu trabalho, ou as suas raízes nas tradições folk e orais da nossa grande nação. Mas sou de New Jersey. Por isso, posso dizer-vos aquilo em que acredito. E acredito que Bob Dylan e James Brown tiveram um bebé. Sim! E abandonaram o miúdo – as relações interraciais entre pessoas do mesmo sexo sendo o que eram naquela altura… –, à beira da estrada, entre as portagens das saídas 8A e 9 da autoestrada de New Jersey. Essa criança era Bruce Springsteen”.



Tal putativa relação de paternidade, por volta de 1978, bifurcava-se em sentidos opostos: Bob Dylan, após os anos iniciais de activismo político, seguidos da “traição” ao fundamentalismo folk, tinha retomado alguma intervenção social em Desire (1976) mas, por essa altura, preparava-se já para o mergulho nas trevas do seu período "born again christian"; Bruce Springsteen, após a febril celebração romântica da mítica América-on the road dos três primeiros álbuns – Greetings From Asbury Park, NJ (1973), The Wild, The Innocent And The E Street Shuffle (1973) e Born To Run (1975) –, em Darkness On The Edge Of Town, enfrentava o momento em que começava a faltar estrada aos “tramps like us, born to run” e a claustrofobia proletária dos subúrbios industriais lhe invadia as canções. É, por isso, assaz irónico que, agora, sejam, coincidentemente, objecto de recuperação, justamente aquelas parcelas da obra de ambos em que a revolta contra o desmoronamento do “sonho americano” e a decepção face à constitucional “pursuit of happiness” orientavam mais pronunciadamente as coordenadas criativas: The Witmark Demos (nono volume da “Bootleg Series” incluindo gravações de 1962 a 1964) e The Promise (recuperação de vinte e dois temas das sessões de Darkness On The Edge Of Town não integrados nesse álbum).



O que se, por um lado, constitui um manifesto acto de rendição da indústria discográfica relativamente ao que – antes e depois da emergência da Internet –, desde há muito circulava nos circuitos piratas paralelos (a própria designação da “Bootleg Series” o denuncia e considerável parcela da obra inédita de Springsteen se encontra, há anos, disponível nos dezanove volumes corsários de The Lost Masters), até aqui, exclusivos responsáveis pelo "trabalho sujo" de desocultação da discografia supostamente aferrolhada nos arquivos, por outro, proporciona um ou dois estridentes contrastes: as mais rudimentares gravações de Dylan recicladas em luxuosa edição e, inclusivamente, disponibilizadas para "download" dirigido aos utilizadores da tecnologia "state of the art" do Blackberry; as “sobras” do disco que Springsteen caracterizou como “my samurai record, stripped to the bone and ready to rumble” em monumental estojo de memorabilia com três CD e três DVD, num total de mais de dez horas de imagens e música.



Espécie de equivalente iconográfico do Scrapbook (2005) de Bob Dylan, a embalagem de The Promise é a reconstituição exacta do caderno de argolas em espiral, com páginas rasgadas, nódoas de café e tudo, no qual o Springsteen maniacamente perfeccionista, foi anotando, corrigindo, cortando ou ampliando os textos das canções (manuscritos ou dactilografados) e os sucessivos alinhamentos possíveis, e colando índices de cassetes, fotos, posters de concertos, recortes de jornais e memorandos para a aquisição de filmes (Badlands, de Malick, não por acaso). No interior, para além da canónica edição remasterizada do Darkness original, um muito educativo DVD (articulando imagens “de época” e actuais) explora o longo processo criativo de três anos – em que Bruce Springsteen, devido a querelas legais com o ex-manager, esteve impedido de entrar em estúdio – que conduziria, segundo Landau, a essa poderosa infusão de “café sem açúcar, café muito forte”, explosão de fúria "blue collar" paralela ao niilismo punk, Vinhas da Ira nuas e cruas em ruptura com a anterior West Side Story alimentada a Phil Spector. Vêmo-lo e ouvimo-lo também em dois concertos: um – arrasador – de 1978, e outro, actual, no Asbury Park’s Paramount Theatre. The Promise, enfim, reúne em 2 CD parte das mais de sessenta excluídas, entre algumas suficientemente escutadas (“Because The Night”, “Fire”) e outras (evocando vibrantemente os anos “de formação” e a matriz de Buddy Holly, Roy Orbison, os Crystals, Shirelles; Drifters ou Ben E. King) apenas não incluídas em Darkness porque a austeridade conceptual não o autorizava. Única inexplicável excepção: o portentoso tema-título.



Se as Witmark Demos são, essencialmente, material de estudo para dylanófilos aplicados (47 gravações tecnicamente primitivas destinadas a registar reportório para "publishing"), para o que o ensaio de Colin Escott será um precioso contributo, The Original Mono Recordings dos seus primeiros oito álbuns ultrapassam o estatuto de mero brinquedo audiófilo. Originalmente concebidos para serem escutados em mono, na conversão para stereo – tal como se obrigássemos um fresco medieval a converter-se à ilusão da perspectiva -, muito do "punch" e da frente unida sonora desses registos se deslassou. Aproveitando a boleia do êxito que conheceram as edições equivalentes dos Beatles, do ano passado, podemos, agora, escutar Dylan como ele o desejou e, aqui também, com extenso texto de apoio de Greil Marcus.

(2010)

1 comment:

Anonymous said...

a pessoa até se benze.
há lá coisa melhor.
filipa (marta)