05 March 2007

A PROGRESSÃO DO DESERTO


A câmara faz zoom pela janela do hotel e fixa a cena: "She took off her stockings, I held them to my face, she had your ankles, I felt filled with grace. 'Two hundred dollars straight in, two-fifty up the ass', she smiled and said. She unbuckled my belt, pulled back her hair and sat in front of me on the bed". "Jump-cut" para o momento do desfecho: "She slipped me out of her mouth, 'You're ready', she said. She took off her bra and panties, wet her finger, slipped it inside her and crawled over me on the bed. She poured me another whisky, said 'Here's to the best you ever had'. We laughed and made a toast. It wasn't the best I ever had, not even close".

Enquanto desfilam os créditos finais no ecrã, escuta-se uma canção: "Life just kind of empties out, less a deluge than a drought, less a giant mushroom cloud than an unexploded shell inside a cell of the Lennox Hotel". É uma hipótese de argumento. Em exercício de colagem a partir de "Reno", de Bruce Springsteen, e "Little Bombs", de Aimee Mann. Não é sequer uma ideia original: quase todas as canções de Springsteen, pelo menos até The River (1980), pareciam "scripts" perdidos de filmes de Ray, Ford, Bogdanovich ou Coppola; P.T. Anderson ergueu o pesadelo asfixiante de Magnolia sobre os temas de Aimee Mann.



Porém, se a América sempre ofereceu uma inesgotável Alexandria de sonhos estropiados à vista da "promised land", desde há quatro anos, a profetizada odisseia de 2001 transformou-se num potencial rastilho de explosão em cadeia de "little bombs". Uma por cada cidadão do império a quem repugna a ideia de viver na sua pele, entre o "mall", o lar ideal e a evangelização por cabo, num mundo edificado sobre o rescaldo do "ground zero".

Laurie Anderson aspira o desconforto e a repulsa para o interior de um "patchwork" de haikus imobilizados onde, em The End Of The Moon, observa o mundo em plano picado. Bruce Springsteen e Aimee Mann escrevem canções onde filmam, em "close up", a progressão do deserto. E não será, de todo, um acaso que, entre Devils & Dust e The Forgotten Arm, as personagens e os cenários quase se pudessem trocar sem que se notasse muito a diferença.


Springsteen parece, finalmente, dar razão a quem, no início o comparava a Dylan (mas já, por altura de Nebraska ou The Ghost Of Tom Joad, isso poderia ser alegado) embora, em nova reencarnação acústica, muitas vezes faça pensar tanto no Tom Waits inicial como em Steinbeck. Mann não desmente a partilha genética com Costello mas, trocado Jon Brion por Joe Henry, aqui e ali, recorda a caligrafia fina de Paul Simon. The Forgotten Arm é deliberadamente conceptual (mais um capítulo na eterna fuga do "king of the jailhouse" e da "queen of the road": "(they) think sharing the burden will lighten the load, so they pack up their troubles in an old Cadillac, that's her in the mirror asleep at the back"), Devil's & Dust bem o poderia ser.



"The Hitter", o pugilista esgotado de Springsteen ("Understand, in the end, Ma, every man plays the game, if you know one different, then speak out his name") é irmão gémeo do protagonista de Aimee ("Tell me why I feel so bad, honey, fighting left me plenty of money, but didn't keep the promise of memory lapses") e, se calhar, ambos filhos de "The Boxer", de Simon. Um diz "I've got my finger on the trigger and tonight faith just ain't enough, when I look inside my heart there's just devils and dust", o outro responde "I want to believe but baby I'm dry, I want to believe but you testify, and I'll pour the drinks like a true believer whose God never blinks". O deserto interior avança um pouco mais e, algures num "highway" da noite americana, alguém deixa escapar "I can't write this story with a happy ending, was I the bullet or the gun, or just a target drawn upon a wall that you decided wasn't worth defending?". (2005)

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