O SOM ANTES DA LINGUAGEM
Não é o género de notícia que ganhe destaque planetário mas a verdade é que, em 2015, Have You In My Wilderness, de Julia Holter, foi eleito álbum do ano para a “Mojo” e “Uncut”, figurou no top 5 da “Q”, “Wire”, “Guardian” e “Sunday Times” e, ainda no início do ano passado, Brian Eno sobre ele derramava louvores. Uma pouco previsível unanimidade quando dirigida a uma autora que, nas obras anteriores – Tragedy (2011), Ekstasis (2012) e Loud City Song (2013) –, recorria ao Hipólito, de Eurípides, citava Frank O’Hara e Virginia Woolf, e inspirava-se na Gigi, de Colette, como combustível conceptual para o forno criativo, enquanto, em simultâneo, se entregava à exploração das possibilidades microtonais e a divertimentos mais ou menos cageanos, mais ou menos dadaístas. Em comparação, Have You In My Wilderness (apesar de, à transparência, nele se entreverem ainda as silhuetas de Christopher Isherwood e, de novo, Colette) quase parecia cerimoniosamente respeitador do formato clássico da canção. Não havia nenhum motivo para alarme: o belíssimo Aviary, sem se ausentar para paragens longínquas, adopta a perspectiva do aventureiro musical – vigilância atenta à via “para onde os sons desejam dirigir-se”.
Há uma muito marcada diferença de perspectiva na composição entre este álbum, Aviary, e o anterior, Have You in My Wilderness...
É verdade. Em Aviary, não me concentrei tanto, como aconteceu em Have You In My Wilderness, nas estruturas tradicionais da canção mas muito mais numa abordagem que procura descobrir para onde os sons desejam dirigir-se.
Num video de apresentação do disco, um dos aspectos que refere é a sua atitude de colocar preferencialmente o som antes da linguagem. O que significa isso exactamente?
Tenho sempre presente a ideia de que, quando colocamos palavras numa música elas deixam de ser realmente palavras, linguagem, e transformam-se em puro som, algo de completamente diferente. Por vezes, quando se sofre um AVC, as pessoas esquecem as palavras, não conseguem falar, mas continuam a ser capazes de cantar uma canção e recordam-se das palavras dela. O que quero dizer é que o nosso cérebro processa a linguagem de forma diferente se for cantada. Se quiser, pode interpretar isto como uma tentativa minha de justificar cientificamente o modo como encaro os textos das canções (risos): não são exactamente poemas mas uma entidade em si mesma.
Mas vai procurá-los e escolhê-los às mais diversas fontes e épocas...
A música vem ter comigo mais facilmente do que as palavras. Tenho de jogar com textos meus e outros pré-existentes de modo a que, por aí, acabe por produzir algum sentido. Por exemplo, a última canção do álbum, "Why Sad Song", é a transcrição fonética de um canto budista tibetano de Ani Choying Drolma. Mas o mais interessante é que, desconhecendo eu o sentido do texto original, vim a descobrir, mais tarde, que a primeira palavra era “sadness" (tristeza).
Por outro lado, em "Chaitius", a meio de uma frase, passa, sem aviso, do inglês para o occitano...
Nessa combinação dos dois idiomas desejei obscurecer um pouco a distinção entre ambos, criar um efeito de desorientação e confusão mental em que não somos capazes de identificar qual é qual em cada momento. Mais uma vez, também aí procurei que o som fosse mais importante do que a linguagem mas, neste caso, jogando também com o significado das palavras.
Era a isso que, de certo modo, se referia numa entrevista à “Rolling Stone” quando afirmava que “a arte é um permanente processo de tradução”?
Sim, sem dúvida.
Numa secção regular da “Mojo” (“Last night a record changed my life”), no mês passado, falava da sua admiração pela banda sonora de Vangelis para Blade Runner e confessava que adoraria ter composto “música medieval para Blade Runner”. Onde é que queria realmente chegar?
É claro que existe aí uma contradição. O filme é de 1982 e procura representar o presente em que vivemos hoje mas, não o representando com exactidão, também não é tremendamente diferente. É intrigante eu sentir-me atraída por uma imagem do futuro tal como ele era imaginado em 1982, isto é, antes de eu nascer... Por outro lado, desde há cerca de dez anos, tenho-me interessado imenso pela história da Idade Média e pela forma como podemos relacionar essa época com a actualidade, por exemplo, no que respeita às cruzadas e aquela aura de tempo de trevas... Quando olho para as telas do Hyeronimus Bosch – ainda que ele não seja um pintor exactamente medieval, é mais renascentista –, em particular, O Jardim das Delícias Terrenas, parecem-me extremamente futuristas, surreais, não consigo deixar de as associar às imagens de Blade Runner e às interrogações acerca do que é ser humano ou ser um replicante...
Onde foi buscar a ideia – que acabaria por ser central em Aviary – de que, na Idade Média, os pássaros eram vistos como símbolos da memória?
A um livro de Mary Carruthers, The Book of Memory: A Study of Memory in Medieval Culture, no qual, entre outros exemplos, ela se refere a uma representação da memória numa iluminura de um Livro de Horas medieval como pássaros engaiolados.
Essa metáfora hitchcockiana dos guinchos dos pássaros como “cacofonia mental num mundo em dissolução”, pode ter também uma interpretação política?
Nunca é uma questão exclusivamente política, nem exclusivamente pessoal. É tudo isso junto. Enquanto artista, não me interessa enviar grandes mensagens mas sim lançar para o mundo peças abertas a serem interpretadas de modo diferente por cada pessoa. Não é apenas uma questão de desejo ou opinião minha, é o que verdadeiramente são.
O facto de o seu pai, Darryl Holter ser historiador teve influência no facto de as suas canções terem um amplo espectro de referências, de Safo a Dante, Guillaume de Machault...
Nao só o meu pai, a minha mãe também é historiadora. E, como seria de prever, claro que conversavam sobre História o tempo todo mas, quando era miúda, a verdade é que não ligava nenhuma à História... Actualmente, interessa-me de tal modo que não sei se poderei honestamente dizer que isso decorre apenas da influência dos meus pais.
A verdade é que podemos escutar cada peça por si mesma mas, ao mesmo tempo, somos quase obrigados a colocá-la num contexto maior no qual se cruzam polifonias medievais, música contemporânea, cânticos budistas...
Sim, sim... comigo, é sempre uma questão de coligir material de muitas fontes e muitas épocas diferentes, é por isso que dá tanto trabalho compor. Mas o mais difícil continuam a ser os textos.
A sua confissão de que, durante os últimos tempos, viveu com a sensação de que “everyday is an emergency” – o que veio dar origem a uma canção com esse título – pode ser transposta para fora de um âmbito exclusivamente pessoal?
É verdade, pode. É como, muitas vezes, me sinto. Isto não significa que não seja capaz de apreciar a minha vida e de reconhecer que ela é muito boa. Mas essa sensação repete-se com alguma frequência e tenho consciência de que não vivo sozinha neste mundo e não escrevo apenas para mim. Daí que seja bom manter a capacidade de colocar todas estas questões em perspectiva.
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