30 October 2018

TRADUZIR


“A arte é sempre um processo de tradução, uma partilha entre pessoas, de um século para outro. Não sei qual o objectivo mas é um conforto que continue a existir. Porque gravei este disco? Não sei. É um refúgio para mim? Não, não sei o que é. Mas temos de continuar a traduzir”. Julia Holter traduziu, então. Antes de mais, para o idioma musical: “Mesmo quando existe texto, não funciona como se se tratasse da linguagem habitual.As palavras transformam-se em música”. À autora e artista visual libanesa-americana, Etel Adnan, furtou uma frase : “I found myself in an aviary full of shrieking birds”. Sob a sombra de Hitchcock, achara o título – Aviary – e um esboço do plano para a exploração da “cacofonia mental num mundo em dissolução”. De muitos séculos atrás, colheu a ideia de, na Idade Média, os pássaros serem símbolos da memória (Aviary seria como um bando de aves esvoaçando dentro da cabeça”) e elaborou uma lista de pássaros associáveis a cada canção. Trouxe também ecos de polifonias medievais, farrapos do Inferno, de Dante, ziguezagues entre "langue d’oc" e inglês sobre memórias trovadorescas e a ambição de imaginar como poderia ser uma banda sonora medieval para Blade Runner: “O filme é de 1982 mas o futuro de 2019 que ele desenhava continua a soar muito mais futurista do que o nosso presente. Sei bem que é um cliché abordar cenários apocalípticos mas, observando tudo o que se passa no mundo, pareceu-me bastante apropriado. Por todo o lado há governantes autocráticos que ameaçam os direitos humanos. Não será nada de novo mas está a acontecer de uma forma diferente”



Durante todo o ano passado, uma frase apossou-se dela: “Everyday is an emergency”. A primeira metade dos 7’45” da peça a que deu origem dir-se-ia uma versão de Ligeti do concerto para buzinas de automóveis que, em 1972, Laurie Anderson, dirigiu num parque de estacionamento, em Rochester. Anderson paira também sobre "I Shall Love 2" e "Underneath The Moon" (“I see no beginning, no middle, no end”) e um Ligeti desmantelado por Alice Coltrane ocupa todo o espaço de "Turn The Light On". "Colligere", aguada impressionista electroacústica, oferece, enfim, a chave: num labirinto submerso, coleccionar e organizar todos estes vestígios e sedimentos, colocá-los em contiguidade com Meredith Monk, Safo, e transcrições fonéticas de cânticos budistas, contra o aterrador pano de fundo de um mundo ameaçado pela peste. Onde os andróides já nem sonham com carneiros eléctricos.

2 comments:

alexandra g. said...

Às vezes, basta ler-te para The hills are alive, with the sound of music!...
:)*

João Lisboa said...

:-)))