09 March 2010

NÃO SE SAÚDAM BANDEIRAS, MAS SIM PESSOAS



“Se insistirem em pôr-me rótulos, chamem-me primeiro ser humano, depois, pacifista, e, por último, cantora folk”. É uma das sugestões que Joan Baez costuma dar quando a sua figura é o assunto em discussão. E não andou muito longe dessa graduação de valores esta conversa com ela: quase cinquenta anos após, com Bob Dylan, ter estado ao lado de Martin Luther King, no Lincoln Memorial, na marcha sobre Washington de 28 de Agosto de 1963; duas semanas depois de ambos terem cantado para Barack Obama, numa evocação do combate pelos direitos cívicos.

A pergunta é estupidamente óbvia mas impossível de evitar: qual foi a sensação – especialmente, para si – de, na Casa Branca, retomar o velho reportório militante para Obama e o resto do mundo escutarem?
É sempre uma situação muito especial, encontrarmo-nos com uma personalidade como ele, particularmente, se – como foi o caso – se trata de alguém que admiramos. Mas eu tinha o meu pequeno plano que consistia em, mesmo que apenas metaforicamente, dizer alguma coisa acerca do Afeganistão. E consegui fazê-lo, demonstrando, ao mesmo tempo, o meu apreço por um presidente que considero ser verdadeiramente extraordinário. Foi, por isso, uma noite muito rica, para mim.

Mas qual foi a sua metáfora?
Quando estava a cantar acerca dos direitos cívicos, em "We Shall Overcome", no espaço de uma das estrofes, falei sobre a decisão do Martin Luther King de que o movimento dos direitos cívicos teria obrigatoriamente de incluir a palavra "Vietname". E ele sabia perfeitamente que, ao fazê-lo, estava a correr um risco, era uma atitude perigosa. Ao falar disto, foi muito claro que eu estava a referir-me à palavra "Afeganistão". E terminei a canção com o verso “we are not afraid”. Ninguém, naquela sala ou quem nos via pela televisão, ficou com dúvidas acerca do que eu pretendia dizer.



Ao actuar na Casa Branca para o primeiro presidente americano negro, sentiu que estava, de novo presente, em plena “History in the making”, no encerramento de um ciclo que tinha começado em Agosto de 1963, quando, com Bob Dylan, tinha também cantado ao lado de Martin Luther King, no dia do famoso discurso “I have a dream”?
Essa sensação de “History in the making” começou ainda antes de Obama se ter candidatado à presidência porque há algo nele que nenhum de nós consegue realmente explicar e que, assim que ele apareceu na cena política, modificou a atmosfera política de todo o mundo. E isso foi uma transformação monumental. Desde aí, tem sido uma luta constante para manter em movimento as suas promessas de mudança porque as barreiras contra ele são gigantescas. As barreiras contra Martin Luther King também o eram e, agora, estão, outra vez, em acção através da extrema-direita Republicana, cujo único objectivo é paralisar as reformas.

Para além disso, no entanto, pensa que Barack Obama, tem estado à altura das imensas esperanças que lhe foram colocadas sobre os ombros?
Sim e não. Ele já realizou algumas mudanças e não fez nada que eu não esperasse que fosse fazer. Eu sabia que ele era o chefe supremo das forças armadas e que isso era algo contra o qual eu iria estar. Mas preocupa-me que, em vez de se encontrar mensalmente com vencedores do Nobel da paz – o que estou convencida que deveria fazer, por uma questão de estratégia, e não apenas por eu ser pacifista –, se reúna, diariamente, com militares. O que não me parece nem prático nem saudável... (risos) Por outro lado, é um homem que, nos seus dez livros preferidos, inclui a biografia de Gandhi. Por isso, penso que, com ele, temos mais hipóteses de uma mudança para melhor do que com qualquer outro.

Também não tem mau gosto musical...
(risos) Pois não!...



A ideia que tinha, quando começou a cantar, acerca do poder da música para determinar mudanças sociais e políticas mantêm-se?
Sim. Quando as pessoas são ingénuas, acreditam que a música, por si mesma, possui esse poder. Claro que isso só acontecerá se justificarmos a música com o que fizermos na nossa vida. Pessoalmente, não desejaria envolver-me política e socialmente sem a música. De todas as artes, a música é aquela que mais facilmente atravessa fronteiras. Uma das nossas cantoras folk, a Odetta, dizia que eram a música e a comida que tinham maior facilidade para cruzar fronteiras... (risos)

A sua escolha inicial da folk deveu-se a parecer-lhe que era o género mais adequado para fazer passar as suas ideias de mudança ou porque, genuinamente, gostava de folk?
Aos dezoito anos, eu já era politizada. Por volta dos dezassete, apaixonei-me por um rapaz, quando vivia em Harvard Square, em Cambridge, no Massachusetts, onde começou a cena folk. E abandonei quase por completo a intervenção política durante dois anos porque me tinha apaixonado por ele, pela folk e pelas baladas, umas atrás das outras. Aproveitei esse tempo para aprender guitarra e saber mais sobre a folk, nos clubes. Vivia lá, tocava guitarra noite e dia, era só que fazia. Até que essa fase terminou e me envolvi activamente na luta pelos direitos cívicos.

A ideia que, hoje, temos acerca da atmosfera extremamente purista e tradicionalista dos militantes da folk – que, anos mais tarde, iria criar sarilhos a Dylan, no festival de Newport –, nessa época, era realmente assim?
Eu era, de certeza, assim, muito tradicionalista (risos). Tal como a maioria das pessoas com quem me dava no Club 47, em Cambridge... não ia muito a Nova Iorque. Cantávamos rigorosamente a partir dos cancioneiros das baladas tradicionais e, quando a questão de utilizar instrumentos eléctricos surgiu por volta de 1963, eu era tão tradicionalista que – por muito estúpida que, agora, pareça – confesso que isso me preocupou. Não era muito flexível mas, mal me apercebi de que gostava como aquilo soava, tive de reconhecer que era um enriquecimento. Claro que houve pessoas, como Pete Seeger, que levaram um pouco mais de tempo a aceitá-lo... (risos)



Na sua autobiografia, And A Voice To Sing With, conta que perguntou, uma vez, a Bob Dylan quais seriam as verdadeiras diferenças de opinião entre ambos e que ele terá respondido que a Joan acreditava que era possível transformar as coisas e ele não. Apesar de ele, de facto, o ter feito, nomeadamente, na música, quem tinha razão?
(risos) Sem dúvida que o fez. Não sei se ele gostaria muito de o admitir, mas na verdade, fê-lo. Aí tem a resposta à sua pergunta.

Qual foi a sensação de, ainda muito jovens, praticamente de um dia para o outro, se verem transformados em porta-vozes de um movimento (o que conduziu Dylan a afastar-se rapidamente) e interrogados sobre todo o tipo de questões políticas?
Desde muito jovem, tive um mentor no que à não-violência dizia respeito o que me deu alguma maturidade e segurança para responder às perguntas que me eram dirigidas. Estivesse certa ou errada, argumentava com grande paixão, nunca permitia que transparecesse a ideia de que não sabia do que estava a falar. E a verdade é que a maioria das pessoas não sabe nada daquilo sobre que fala.

O seu pai – uma figura científica importante, co-inventor do microscópio de raios-X – foi importante na sua formação política?
Sim, era socialmente muito atento, e tenho a certeza que se fez Quaker devido à atenção que tinha pelas pessoas. Para ele, e depois, também, para mim, o aspecto mais decisivo da igreja Quaker era o facto de considerar as pessoas mais importantes do que as nações. O que significa que não se saúdam bandeiras, mas sim, pessoas, todas as pessoas. Saudar bandeiras é excluir sempre alguém o que, rapidamente, gera tragédias. Ainda hoje, sinto afinidade com essa forma de encarar o mundo e com o silêncio que, para os Quakers, é a sua forma de prática religiosa. Tal como sinto em relação aos meus amigos praticantes do budismo. A meditação e o silêncio tornaram-se muito importantes na minha vida. Sugeria a toda a gente que desse espaço ao silêncio, fala-se demasiado! (risos)

Nos seus últimos discos, não só a sua voz se tornou mais grave e escura como isso se articulou muito bem com a opção pelo reportório de autores como Elvis Costello ou Tom Waits. Uma coisa foi consequência da outra?
São as canções que me escolhem, não estou bem certa de ser eu a escolhê-las. A forma como um disco se constrói continua a ser, para mim, um processo misterioso. À medida que vamos pensando nas canções, ou se ajustam e se tornam confortáveis ou não. Sim, a minha voz está mais grave e escura, a minha voz jovem nunca voltarei a tê-la, mas sinto que a que tenho, está cinquenta anos mais rica.

(2010)

3 comments:

Anonymous said...

"NÃO SE SAÚDAM BANDEIRAS, MAS SIM, PESSOAS"

Acho que está uma vírgula a mais ... ou a menos

Carlos said...

Ontem, vi-a e ouvi-a ao vivo - magnífica.

João Lisboa said...

Vírgula aparada.