29 May 2009

CIVILIZAÇÃO (J. P. Coutinho)

Viajo de comboio todas as semanas. Porto-Lisboa. Lisboa-Porto. São três horas de pura delícia que obedecem a ritual estabelecido. Entro em Campanhã, instalo-me no lugar. Descalço-me. As meninas da CP, que obviamente já me conhecem, não ousam servir-me um «sumo», ou um «guaraná». Passam directamente - e discretamente - para bebidas mais proteicas. Entre Campanhã e Aveiro, ponho as notícias em dia. Três jornais diários - dois portugueses, um inglês. Em quarenta e cinco minutos, eu e o mundo tratamo-nos por tu. Em Aveiro tudo muda: recosto-me na cadeira, desaperto levemente o nó da gravata e sei que, até Coimbra, não há incómodos. O telemóvel permanece confortavelmente desligado. Acordo em Coimbra. Foram quarenta minutos de ronco suave - ou, como dizem os americanos, «the beauty sleep». Faço dois ou três telefonemas (profissionais), mais dois (sentimentais) e mais um (puramente clínico). Entre Coimbra e, digamos, Santarém, vou tomando notas para artigos diversos. Uma frase. Uma ideia. Um assomo de delírio. E de Santarém a Lisboa, é o grand final: trinta ou quarenta páginas de uma biografia, de um romance, de um ensaio. Quando chego a Lisboa, com a Cavalleria Rusticana a soar triunfalmente no portátil, sinto que rejuvenesci vários anos e, mais, que aquelas três horas foram as três horas mais felizes da minha miserável semana. Sem falar da nobre arte do engate, que ganha no comboio uma dimensão de cinefilia. O bar. A inesperada companhia de viagem. Os corredores, onde se cai sempre para o lado errado. E, claro, as minúsculas e tremidas casas de banho, cujos lavatórios foram anatomicamente concebidos por Cupido lui-même. Pois bem. Este mundo vai acabar. De acordo com o optimismo do tempo, Porto e Lisboa estarão a duas horas de distância. Talvez menos. É o TGV. É a adoração orgásmica da velocidade e a ânsia doentia de chegar. A ejaculação precoce do executivo moderno, sempre pronto a trocar o avião pelo comboio - desde que o comboio, claro, seja rápido e asséptico. Esta gente vai invadir o meu paraíso. Bárbaros igualmente produzidos e vestidos, a beber «Ice Tea» (não vomitem), o cabelo empastado com resina - e uma obsessão patológica por «mercados», «montes alentejanos» e «as tetas» de uma galdéria qualquer. O TGV não me rouba apenas uma hora de prazer inofensivo. O TGV acabará por liquidar um dos últimos vestígios de genuína civilização. (aqui) (2009)

4 comments:

Anonymous said...

Portanto, é de concluir que o Senhor autor deste post se encontre imensamente feliz pelo facto de a "ameaça" do TGV Porto-Lx-Porto, após quase 6 anos, ainda não se encontrar concretizada.

sophia

Táxi Pluvioso said...

É bom viajar por Portugal com a América na cabeça, oh meu querido Oh!bama, roga por nós.

O mocinho Neutral Milk Hotel pode ser visto durante uma semana.

Táxi Pluvioso said...

Dylan, Baez, Country Joe morreram (ainda não foram enterrados) mas os trovadores contestatários continuam...

João Lisboa said...

"Portanto, é de concluir que o Senhor autor deste post se encontre imensamente feliz pelo facto de a "ameaça" do TGV Porto-Lx-Porto, após quase 6 anos, ainda não se encontrar concretizada"

Não respondo pelo JP Coutinho (embora não seja difícil retirar essa conclusão). Pelo que me diz respeito, sim: sempre que necesito ir ao Porto (e voltar), o Alfa tem sido uma experiência mais do que boa. E, caso haja quem ache que, menos 15 ou 20 mns de viagem são uma coisa importantíssima, era só melhorar alguns troços da linha que o Alfa chega para as encomendas.