29 February 2008

AINDA DE GARRAS DE FORA



Morrissey - Greatest Hits

A 4 de Dezembro de 2006, nos bastidores da Metro Radio Arena de Newcastle, Morrissey concede uma entrevista de dez minutos ao seu jovem “director de campanha” para a eleição do Britain’s Greatest Living Icon, do “Culture Show” da BBC-2 (em que integrou a “shortlist” juntamente com David Attenborough – o vencedor final – e Paul McCartney). Toda ela vale a pena ser vista no YouTube mas o que realmente agora importa encontra-se logo nos primeiros dois segundos: irradiando felicidade, o entrevistador saúda-o com um “So, Morrissey, it’s good to meet you!” ao que ele, com um franzir de sobrolho verdadeiramente intrigado, responde “Why?...”.



Poderá ser uma encenação de falsa modéstia estudadamente cultivada mas, ainda que o seja, vale a pena recordar que talvez nem Leonard Cohen, em “Dress Rehearsal Rag”, terá sido capaz de escrever algo de tão cruelmente auto-humilhante como Morrissey, no texto de “Let Me Kiss You”: “Close your eyes and think of someone you physically admire and let me kiss you, then you open your eyes and you see someone that you physically despise, but my heart is open, my heart is open to you”. De facto, dificilmente se descobrirá alguém que, como Morrissey, generosa e frequentemente, consiga, em simultâneo, aspergir tanta bílis sobre si mesmo e o universo à volta e costurar isso sob a forma de canções pop de corte clássico.



É verdade que, desde a dissolução dos Smiths, raramente recuperou aquela imponderável espuma sonora na qual Johnny Marr envolvia o seu literato e requintado arsénico verbal. Mas, se o título deste duplo Greatest Hits (catorze faixas de estúdio mais oito de um concerto no Hollywood Bowl) deve ser levado à letra – todas as canções, maioritariamente extraídas dos últimos álbuns, residiram no top 20 de singles britânico e nove delas treparam até aos dez lugares cimeiros –, é justo reconhecer que, mesmo trocando continuamente de parceiro de escrita (Stephen Street, Mark Nevin, Boz Boorer, Alain Whyte), sem demasiados passos em falso terrivelmente comprometedores, a projecção pública de Morrissey, a solo, excedeu já em muito tudo aquilo que, para além da lenda, alguma vez os Smiths atingiram.



E é aqui que dois pontos não poderão deixar de ser sublinhados: tanto Street como Nevin, Boorer ou Whyte (com inevitáveis diferenças menores) acabaram por operar mais como “tradutores” da mesma “morrisseyness” que Marr havia identificado do que na qualidade de proponentes de hipóteses estéticas alternativas; nem por um só instante ao Morrissey que, logo no início do seu percurso individual, no apropriadamente intitulado Viva Hate (1988), dedicara a Margaret Thatcher as gentis palavras “the kind people have a wonderful dream, Margaret on the guillotine”, ocorreu a ideia de encolher as garras.



Talvez inevitavelmente, de forma desordenada, contraditória e ambígua: acusado de racismo, xenofobia e simpatia por políticas nacionalistas de extrema-direita, respondeu. em “Irish Blood, English Heart” (de You Are The Quarry, 2004), “I’ve been dreaming of a time when to be English is not to be baneful, to be standing by the flag not feeling shameful, racist or partial”; apanhado de surpresa, num palco em Dublin, pela notícia da morte de Ronald Reagan, em 5 de Junho de 2004, “bigmouth strikes again” e confessa que teria preferido que fosse George W. Bush o falecido (há semanas, deu a sua bênção a Barack Obama e, após ter alfinetado “Billary” Clinton, disparou “The World Is Full Of Crashing Bores”), acusando, meses mais tarde, os serviços de imigração norte-americanos de se comportarem com “a amabilidade das SS hitlerianas”.



Porque, no fundo, o conflito da personagem a quem o juiz que decidiu sobre a querela autoral que o opôs ao ex-Smiths, Mike Joyce, classificou como “desleal, truculento e de pouca confiança” começa dentro de si mesma (“I bear more grudges than lonely high court judges”), derrama-se sobre o mundo (“This is the coastal town that they forgot to close down, Armageddon, come Armageddon, come Armageddon, come!”) e nunca saberemos ao certo onde começa uma e acaba o outro. (2008)

16 comments:

Anonymous said...

"algo de tão cruelmente auto-humilhante como Morrissey, no texto de “Let Me Kiss You”: “Close your eyes and think of someone you physically admire and let me kiss you"

Eu vejo apenas humor negro aí. O miserabilismo dele é sarcasmo puro. O tipo é bom a cultivar a arte do paradoxo. É só pose. Ninguém mentalmente são quer saber do seu próprio aspecto físico. Tenho amigas a dizer que iam para a cama com o José Cid e o Mozz não é mais horrendo. E nem falei do Buko...

margarete said...
This comment has been removed by the author.
Anonymous said...

E acho que no fundo o que ele quer dizer é isto: "sou tão inteligente que nem admito que gostem de mim pelo meu corpinho"

margarete said...

oiço-o com a "cruelmente auto-humilhação"... às tantas são problemas de auto-estima do ouvinte, mas adiante... :D

desde o fds passado que tenho ouvido intermitentemente "you are the quarry" em casa, (por x, deixo ficar o mm cd semanas inteiras no leitor de cd's; hábito que tem mais de obsessivo do que de preguiça), ontem, falando com uma irmãzinha-esposa-de-cristo dei por mim a cantar mentalmente"I have forgiven jesus" :P

João Lisboa said...

É humor negro. É sarcasmo. É cultivo da arte do paradoxo. É sarcasmo. É pose. Mas não deixa de ser tudo isso em registo de auto-humilhação. Por isso, é que peguei no exemplo do "Dress Rehearsal Rag":

I thought you were the crown prince
of all the wheels in Ivory Town.
Just take a look at your body now,
there's nothing much to save
and a bitter voice in the mirror cries,
"Hey, Prince, you need a shave."

E olha que tenho muitas dúvidas acerca de "ninguém mentalmente são quer saber do seu próprio aspecto físico"... quanto às tuas amigas que iriam para a cama com o Cid, acho que alguém deverá revelar-lhes a cruel verdade.

E, agora, tenho de ir ali dar um jeitinho no cabelo.

margarete said...

que fique registado: eu não sou uma dessas amigas do Manel :O

menina alice said...

Vou ter de ler este post, não é?...

João Lisboa said...

É.

Anonymous said...

Ugly guys with beautiful girls
You always know what the story is.
Beautiful girls with ugly guys
What do they take us for anyway?
What do they take us for anyway?

Ugly guys with beautiful girls
Ugly guys with beautiful girls

As they walk down the street arm in arm, I see
them and once again feel the need to ask
myself the question, the question that has
weighed heavily on me of late. How is it
possible that a guy and a girl so dissimilar
in physical appearance, there being such a
disparity in how attractive each is, be nonetheless
in what would appear to be some sort of relationship?

Sparks

Não queiram saber a resposta...

Nunes said...

Penso que a discussão acerca da autenticidade da auto-humilhação no Morrissey se torna irrelevante. Ele (e já agora o seu descendente mais directo, o Neil Hannon a.k.a. Divine Comedy) é tão falso quanto o Dylan e o Mark Eitzel. Todos cultivam uma imagem e todos seriam infinitamente mais chatos se não o fizessem, parece-me. E no entanto há sempre um precioso pedaço de verdade naquilo que escrevem...

gorgulho said...

"E, agora, tenho de ir ali dar um jeitinho no cabelo."

Sim, é ano bissexto...

menina alice said...

E a auto-humilhação conquista sempre votos.

Bem... alguém tem de ir para a cama com o José Cid, não é? O Buko não sei quem é, mas também deve ser filho de deus.

Anonymous said...

Bukowski. Um célebre bebedor de cerveja mais feio que o Morrissey mas ao qual nenhuma mulher resistia.

Anonymous said...

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