AS ELITES SÃO UMA MERDA!
Trinta anos depois de, na condição de exilado político, ter trocado o Brasil por Londres, no fim de semana passado, Caetano Veloso voltou à capital do Reino Unido. Não foi, evidentemente, o primeiro regresso em liberdade mas, confessa ele, foi a primeira vez que a memória já lhe permitiu fazê-lo sem desconforto. Estava também em boa companhia: no concerto de beneficência para o Task Brasil Trust — dedicado à angariação de fundos para o apoio aos meninos da rua — participaram também Gilberto Gil, Gal Costa, Virginia Rodrigues, Elza Soares e Chico Buarque. O que, certamente, lhe libertou o espírito e, no dia seguinte, lhe deu vontade de soltar a língua numa conversa aberta sobre o novo álbum de homenagem a Federico Fellini, o recente e enorme sucesso de Prenda Minha, o modo descomplexado como ele lida com a nova situação de celebridade mediática e o seu ódio pelas elites.
Ontem, durante o concerto no Royal Albert Hall, estava a pensar no que significaria para si, estar em Londres de livre vontade trinta anos depois de ter sido obrigado a vir para cá como exilado. E logo a seguir, quando cantou "London, London", você falou precisamente nisso...
O maior valor que teve foi eu poder gostar da canção "London, London" outra vez. Só depois de muitos anos é que comecei a considerar isso possível. Cantei-a uma vez aqui no Royal Festival Hall mas fi-lo ainda com dificuldade. Ontem à noite já foi total, tranquilo, gostei da canção. Foi um grande acontecimento.
Outra coisa que levou trinta anos para acontecer foi a descoberta pela crítica anglo-americana do Tropicalismo, acerca do qual agora se sucedem as reedições e as reacções de espanto e admiração...
A música brasileira como um todo não demorou tanto a ser reconhecida. Isso aconteceu desde Carmen Miranda, depois, a bossa nova instaurou o respeito pela música brasileira em qualquer lugar do mundo e o Milton foi uma reafirmação de tudo isso. Mais tarde ou mais cedo, o Tropicalismo (que era uma atitude crítica a respeito da produção de música popular no Brasil) viria a ser entendido por pessoas que não falassem português e não tivessem a experiência da história da MPB. Ser rápido ou imediato era impossível.
E, no entanto, estava cheio de referências à pop anglo-americana...
Por isso mesmo, por não ser suficientemente característico do Brasil ou do Terceiro Mundo.
Por não ser suficientemente "étnico"...
Exacto. Era ilegível, era simplesmente confuso e, do ponto de vista da produção, era mais pobre, meio mal gravado. Vim para Londres imediatamente em cima do lançamento do Tropicalismo no Brasil e, quando os estrangeiros nos ouviam com o violão, achavam maravilhoso. Mas os discos tropicalistas que trouxemos do Brasil não se identificavam com a ideia de música do Terceiro Mundo que eles tinham. Se fosse para ser pop, experimental, moderno, eles tinham os Beatles fazendo coisas mais bem gravadas. Agora, com todos esses anos de música brasileira, com João Gilberto, Jobim, Milton, com os shows de Gil, Jorge Ben, Sérgio Mendes (que segura o lado comercial com uma boa qualidade musical) e, modéstia à parte, os meus em particular que trouxeram uma nota de postura exigente e sofisticada, já é possível entender uma coisa que, mesmo no Brasil, num primeiro momento, não foi fácil de compreender.
Há semanas, em Nova Iorque, o Beck que o venera contou-me que, num concerto seu em Los Angeles, subiu ao palco para cantar duas canções consigo.
É verdade, cantou o "Baby" e "Maria Bethânia", uma canção que escrevi em inglês quando morava aqui.
Falando do seu disco de homenagem a Fellini, a propósito da morte de Amália Rodrigues, mandou uma mensagem para a imprensa portuguesa em que se referia a ambos dizendo "os meus artistas mais amados estão morrendo"...
E, quando cheguei ao Brasil, o João Cabral de Melo Neto, o meu poeta brasileiro favorito, tinha também morrido.
Começa a sentir-se só em relação a essas suas figuras protectoras ou, de algum modo, outras, à sua volta, as vão substituindo?
As duas coisas. Eu estava em digressão pelo Brasil e recebi a notícia em Florianópolis. Nessa mesma noite, sem dizer nada, cantei o fado "Amália" e a plateia imediatamente se levantou a aplaudir. Fiquei muito emocionado. Vamos ficando mais velhos e, inevitavelmente, as pessoas que admirávamos quando éramos crianças ou adolescentes vão morrendo. É por isso que eu acabava dizendo "é assim".
Em que exacta medida, como escritor, poeta, músico, cantor, brasileiro, o cinema de Fellini o influenciou?
Como pessoa, ter visto La Strada, aos quinze anos, foi crucial. Chorei muito, fiquei muito impressionado, a vulnerabilidade da figura de Giulietta Masina comoveu-me. Assim como aquela personagem de brutamontes, imbecil, que parecia nunca ter olhado para o céu e que, na última cena, cheio de culpa e de solidão, pela primeira vez levanta os olhos, olha para o céu à noite e chora. É uma das coisas mais lindas do cinema. Fiquei para sempre marcado por essas imagens e tudo o que fiz, de uma forma ou de outra, trouxe um eco dessa experiência.
Entretanto, com Prenda Minha, o seu disco anterior, passou-se em Portugal o mesmo que no Brasil: por causa da inclusão de "Sozinho" na banda sonora de uma telenovela, transformou-se num inesperado êxito de vendas. O que significa para si esta súbita popularidade, não diria pelas razões erradas, mas por factores em que, à partida, não teria pensado?
Não significa nada. Nunca penso em termos de grandes vendas, não é uma coisa que esteja no meu universo de interesses. Foi um acidente de percurso. Já aconteceu canções minhas estoirarem com uma novela mas o que vende é o disco/colectânea da novela. Nunca entendi nem ninguém entende por que motivo, neste caso, foi o meu disco que vendeu desbragadamente. Talvez comprem o álbum por causa do "Sozinho" mas o resto acaba sendo muito fácil para o ouvinte comum, são canções já conhecidas.
No texto de promoção do disco dedicado a Fellini, fala da grande proeza que é conseguir ser simultaneamente sentimental, popular e um grande artista. Embora não me pareça que "sentimental" se aplique muito a si, finalmente chegou também a esse ponto.
Não me considero, de facto, um compositor sentimental e não tenho sido tão popular assim. Sou muito conhecido, fala-se muito em mim e apareço muito nos jornais mas nunca fui um grande vendedor de discos a não ser agora. Nem metade disto eu vendi alguma vez. Habitualmente, vendo 100, 150 mil discos e já acho muito. Um milhão é fantástico!
A propósito da polémica que a sua aparição na revista "Caras" desencadeou no Brasil, você afirmou a uma publicação brasileira aqui de Londres,"Ser elite brasileira? Ser essa merda? Eu sou e serei sempre contra isso. Estou misturado com a realidade do Brasil, eu sou do povo, eu sou vulgar, eu sou pop, eu sou do século XX, tenho orgulho de gostar de cinema, de música popular, de aparecer na "Caras" e de brincar o Carnaval da Bahia". Sente-se, então, confortável com as consequências desta recente popularidade?
Não me incomoda muito. A "Folha de S. Paulo" reclamou muito por eu ter aparecido na "Caras". Pode-se gostar ou não mas acho pior, sendo realmente uma celebridade, fingir que não o sou, que sou chique. Há uma altura em que não se pode aparecer na "Caras" para se poder ficar numa área superior, como se se pertencesse a uma elite de bom gosto que não se mistura com a vulgaridade dos novos ricos. Eu adoro novos ricos! Sabe o que significa novo rico? É mobilidade social, tudo o que falta na Europa e que dá essa impressão de falta de vitalidade. Gente que era pobre e ficou rica. Eu gosto da confusão social. Eu adoro o Brasil e os EUA sobretudo por isso. Não tenho saudades do "Ancien Régime" nem do que é o chique, não quero ter nada a ver com isso. Eu sou de esquerda, mas de esquerda mesmo, nesse sentido! Por isso, sou a favor do capitalismo, da vulgaridade, sou contra adorno que é igual à direita que quer restaurar a aura das grandes famílias, das grandes posições de responsabilidade cultural detidas por um grupo fechado e "excelente"... É uma Europa com uma saudade horrível de si mesma quando essas coisas eram intransponivelmente estabelecidas. Eu gosto da sociedade industrial, da sociedade pós-industrial, com todas as suas dificuldades e inautenticidade! Eu não tenho de que me sujar. A mãe do meu pai não se casou, teve filhos de mais de dois homens, a mãe da minha mãe tão pouco, eu sou filho do povo brasileiro, de uma cidade pequena e pobre do interior da Bahia e sou mulato! Essa conversa não entra na minha cabeça. A "Caras" é um problema da imprensa brasileira, não meu. Eles que criem uma revista boa que faça a "Caras" ser desnecessária. Essa merda de elite brasileira...o que o Brasil menos precisa é de elites! O Brasil só tem elites!
É, se calhar, uma espécie de saudade dos tempos da colonização portuguesa...
A colonização portuguesa do Brasil foi a pior coisa que você pode imaginar. Foi o oposto dos EUA para onde alguns ingleses foram para criar um país melhor. Os portugueses foram a um lugar que não lhes interessava para nada apenas para sugar, sugar, sugar o que fosse possível e matar os índios. Bom, os ingleses são melhores a matar índio e a discriminar preto do que os portugueses que não são brancos direito, é uma gente esquisita do Sul da Europa que os outros europeus acham meio mouros, meio africanos e não sabe bem fazer a discriminação racial... Porém, os ingleses criaram na América uma sociedade nova, melhor e mais justa. Mas também Portugal já é uma piada, o Brasil é uma grande piada universal, o único país da América para onde o rei, fugindo de Napoleão, levou o centro do império e de quem o filho proclamou a independência. Essa história que tem um lado deslumbrante e que só poderia ter acontecido entre Portugal e o Brasil teve também esse lado horrendo da criação de uma elite pequena e fechada que se habituou a explorar a maioria escura e pobre de uma maneira mil vezes mais desumana que o mero racismo formal. A discriminação social, que inclui automaticamente o factor racial, foi brutal e sem preocupação. Embora, apesar de tudo isso, eu ainda ache a solução brasileira mais interessante do que a solução americana.
Quer dizer, culturalmente mais interessante?
Humanamente mais interessante. É um optimismo que sai de dentro do meu pessimismo acerca do Brasil e de Portugal. Pode ser que a humanidade como um todo nos obrigue a jogar isso fora e nós, fracamente, o aceitemos. Mas, se tivermos vontade de afirmar o que temos, diremos uma coisa humanamente muito mais interessante a respeito de raça do que qualquer outro povo. E essa originalidade deve ser usada por nós todos para o melhor.
O que nos traz uma vez mais de volta às concepções do professor Agostinho da Silva...
Sem dúvida. Aquele lado de saudade da igreja católica da Idade Média, eu dispenso. O lado que eu gosto é esse, a esquerda dele. (1999)
09 October 2007
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7 comments:
Isto é aquela entrevista que fez tremer a «merda das elites»?
Yup. Essa mesma. Agora, vai seguir-se uma linha direitinha até à do Espesso do fim de semana passado. Ortodoxia cronológica.
Grande entrevista, João, lembro-me bem disto. Recordo-me de ler "Ser essa merda? Eu sou e serei sempre contra isso. Estou misturado com a realidade do Brasil, eu sou do povo, eu sou vulgar, eu sou pop, eu sou do século XX" e de ficar emocionado. Trocando Brasil por Portugal assino por baixo. "Ser essa merda?" É isso aí. Lindo.
Muito bom, guerrilha sensual.
E a da semana passada também, em versão «aqui neste sofá confortável».
era por esta entrevista que te perguntava no fim de semana. cá está ela, tal como me lembrava. o final, então, é ainda mais explosivo do que eu tinha na memória. pegando nas palavras de caetanho: total!
muito mesmo!
e eu que tinha afirmado antes de almoço a decisão de não *poder* ir ao concerto a semana que vem, venho aqui ter... assim de chofre! fico a vacilar e ainda por cima o anúncio para os próximos posts (querem ver que a moça vai comprar bilhete?)
e são mesmo. éxistem e sempre existirão mas o nível das chamadas elites tá de rastos. basta andar por aqui para perceber a falta de valores e o mau carácter que por lá pupulam. elite tem a ver sobretudo com nobreza de carácter mais do que berço e estatuto social. alguns elitosos causam-me náuseas.
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