07 March 2007

CONFETTI E VIDRO COLORIDO



O Grand Soho Hotel é uma daquelas obras de arte arquitectónica traumaticamente chiques que, ali mesmo à beira de Canal Street, não destoam da atmosfera histórica da vizinha Greenwich Village e da lenda cultural a ele associada que, durante os quarenta anos em que o lado boémio se converteu em ofuscante brilho "fashionable", ainda se podem dar ao luxo de conviver, a meia dúzia de metros, com outras luminárias nova-iorquinas como o Blue Note ou o Actor's Studio. Todo em apropriados tons de cinzento metal e pedra, com "dummies" decapitados no "lobby", era, sem dúvida, o local adequado para, na "penthouse" — com as Twin Towers do World Trade Center à retaguarda e toda a Manhattan espraiada em frente — se proceder ao lançamento de Midnite Vultures, o álbum de Beck destinado a transformá-lo definitivamente em pop star planetária indiscutível.



No acolhimento, a ruiva Wendy e a "what's her name" que era a cara chapada da Ellen De Generes-vinte-anos-depois (funcionárias aplicadas da Geffen), fazem-nos escutar, em rigoroso exclusivo, o álbum — o pânico da divulgação pela Internet, nos tempos que correm, não permite mais do que isso — e, a seguir, é preciso esperar por "his Beckness" que, manifestamente, não é uma "morning person". Pela parte que me toca, eu espero, compreendo evangelicamente, como uma omelete a preço de luxo oriental numa rua ao lado, e, numa espelunca chinesa de Canal Street, compro as pilhas que me faltavam para fotografar Nova Iorque de um daqueles ninhos de águias a que dificilmente se volta. Aguardado às onze, Beck aparece, finalmente, com a ínfima e deliciosa namorada morena, quase duas horas depois. A tradição e a pop-arte ainda serão o que foram — Beck, por linhagem familiar, sabe do que fala — mas o mundo já deu muitas voltas. E Midnite Vultures — acreditem-me, o grande álbum do final do século —, quando se refere a abutres, não tem dúvidas sobre aquilo que diz.



Principalmente depois de Mellow Gold, a sua música tem sido descrita e qualificada das mais diversas formas das quais a que me parecia mais apropriada até este álbum e, em especial, no caso de Mutations, era "mutant folk machine". Isso, para si, fazia algum sentido?
Não me reconheço nada na maioria das coisas que se escreve acerca de mim. Uma das raríssimas vezes que reconheci as minhas próprias palavras foi numa entrevista que dei à "Rolling Stone". Não tenho jeito nenhum para classificar nada e muito menos para definir a minha música. Mas, se quiser, posso-lhe dizer que é música feita de vidro colorido e confetti.



Este será, provavelmente, o seu álbum sobre o qual recaem as maiores expectativas no que respeita à possibilidade de se transformar num best-seller. Isso limitou de alguma forma a sua forma de escrever, impôs-lhe algum tipo de auto censura em relação a coisas que poderiam ser consideradas comercialmente "subversivas"?
Há, talvez, uma meia dúzia de canções um bocado mais extravagantes, umas quantas balas perdidas que decidi que era mais razoável não incluir no álbum. Mas, de resto, o mais subversivo que consigo ser é andar de mota sem capacete!... E, por acaso, até conduzo com cuidado... De resto, este disco contém uma pop tão experimental que podia perfeitamente ter sido um projecto lateral para uma editora independente. Mas também nunca planifico nada em relação aos meus discos no que respeita às expectativas de vender não sei quantos milhões de exemplares.



Até aqui, a tal ideia da "mutant folk machine" vinha da sua forma singular de realizar uma colagem modernista das mais diversas tradições da música popular norte americana. Agora, Midnite Vultures, dispara em todas as direcções, cada canção é bastante diferente da anterior, a atmosfera é consideravelmente mais pop...
Nalgumas destas canções procurei trabalhar sobre elementos como a côr, a deformidade, o sentido de humor. Costumo lançar a minha rede de pesca de uma forma muito ampla, procuro capturar todo o tipo de coisas. Imagens, filmes, as ideias mais diversas, tudo pode ser integrado, muitas vezes de um modo subconsciente. Em "Sexxlaws", por exemplo, inspirei-me no trabalho de William Klein, um fotógrafo que fez também alguns filmes e documentários. Retirei daí um certo elemento de pop-arte caótica, uma estética quase de claque de futebol multicolorida que transparece nas partes da secção de metais e na própria encenação do videoclip que é sobre a agressividade e o absurdo da energia masculina desprovida de qualquer sentido.



Seria extremamente fácil para mim escrever canções tenebrosas, a preto e branco, em vez de utilizar a paleta completa das cores e de optar por uma música mais celebratória. Na minha música, existirão apenas uma ou duas bolsas de romantismo, daquele tipo que se costuma encenar à beira de uma falésia. Mas apenas uma ou duas. No entanto, haverá sempre público para esse género de coisas. A maioria das pessoas não anda à procura de manifestos artísticos pessoais mas encara a música como um objecto utilitário que as deve fazer sentir assim ou assado.

A propósito do que acabou de dizer, recordo-me de, uma vez, ter afirmado que, apesar de habitualmente lidar com assuntos que não são propriamente festivos, o Leonard Cohen possuia, na sua opinião, um extraordinário sentido de humor. É esse tipo de contraste que também procura?
Quando oiço música, gosto que ela me surpreenda, que tenha personalidade, que me desperte e me faça prestar atenção. Embora eu venha de um extremo exactamente oposto, fui decididamente influenciado pela sensibilidade do Leonard Cohen. Ele é capaz de estar a falar dos temas e das emoções mais densos e pesados e, de repente, pelo meio, dizer qualquer coisa sobre crack e sexo anal!... É isso que eu quero dizer quando afirmo que gosto que a música me surpreenda: aquele momento em que, de súbito, nos puxam a cadeira e nos apercebemos que já não nos conseguimos sentar.



Esse elemento de pop-arte da sua música de que falava há pouco é o género de coisa que corre na sua família. A sua mãe fazia parte da tribo de Andy Warhol, o seu avô, Al Hansen, foi um dos elementos do movimento artístico Fluxus, nos anos sesenta... Sente-se um pouco o herdeiro de tudo isso?
É verdade que na minha família sempre existiu uma veia artística e é natural que eu não tenha sido indiferente a isso. Mas o meu avô nem sequer teve assim uma influência tão determinante como, por vezes, se diz. Aparecia para aí de cinco em cinco anos, estive com ele, no maximo, umas três vezes. Durante três ou quatro anos, ameaçou que nos havia de visitar e apareceu um dia de manhã quando eu me preparava para ir para a escola. Depois, foi para o jardim, pegou num machado e pôs-se a cortar lenha.



Tem consciência de ter existido um momento em que verdadeiramente sentiu que, fosse como fosse, também haveria de seguir por um caminho ligado às artes?
Não posso dizer que tenha havido um momento em que tivesse decidido dedicar-me por inteiro a uma carreira artística. Aconteceu tudo de uma forma extraordinariamente natural. Lembro-me que a primeira canção que escrevi foi nos tempos de escola, numa daquelas máquinas de calcular de bolso em que cada tecla dá uma nota... A princípio, via as canções como uma ocupação um bocado errática. Não tinha uma confiança por aí além na qualidade delas. Quando escrevi "Loser", deixei-a na gaveta durante um ou dois anos. Foram outras pessoas que me chamaram a atenção para ela. Ainda hoje nunca tenho a certeza se escrevo canções fantásticas ou se não passa tudo de uma belíssima merda. É sempre necessário que alguém de fora mo diga. E, no fundo, também não gosto muito de pensar nisso.



Midnite Vultures vai ter uma edição especial para o Japão. Há alguma razão especial para isso?
Gosto imenso do Japão. Quando lá estive em digressão com uma quantidade de bandas "avant noise" inacreditáveis, andava sempre com a sensação de que havia uma espécie de energia muito intensa que pairava no ar. Sentia-me como se andasse permanentemente drogado. Até que um dia descobri que o que colocavam nas mesas dos restaurantes e na comida não era sal mas MSG (monossódioglutamato) que produzia esse efeito! Toneladas de MSG! Por isso, se calhar, neste disco, há algumas canções escritas sob influência do MSG!... Mas adoro Tóquio. Los Angeles é um local óptimo para se trabalhar tranquilamente mas cidades como Tóquio ou Nova Iorque são os sítios onde realmente fermentam as ideias novas capazes de nos estimularem. É como voltar a entrar numa sala de onde acabámos de sair e descobrirmos que, agora, as cadeiras estão presas ao tecto e a água corre para cima em vez de correr para baixo. Aquilo a que eu chamo uma desorientação divertida.



Segundo sei, as gravações de Midnite Vultures pulverizaram sucessivamente vários prazos-limite. Houve alguma dificuldade especial ou foi só uma questão de perfeccionismo agudo?
Gravar este disco foi um processo muito longo de cerca de 14 meses. Foi como escavar um poço: quando pensamos que chegámos a meio já estamos esgotados e ainda temos mais do dobro para chegar até ao fundo. E eu queria chegar ao fundo. Até agora, começava sempre com uma ideia bastante definida do tipo de sonoridade que pretendia alcançar mas, pelo meio, ficavam sempre muitas pontas soltas que eram como esboços de uma versão ideal. Desta vez, fiz um enorme esforço para ficar o mais próximo possível desse ideal. Chegámos a passar um dia inteiro à volta de cinco segundos de música. De qualquer modo, tudo evoluiu canção a canção. Inicialmente, era música muito electrónica, depois foi-se aproximando mais do rock. Por fim, usei as canções que consegui acabar no prazo limite, foi uma escolha um bocado aleatória. Há pelo menos outras vinte potencialmente tão boas como estas que ficaram de fora à espera de melhores dias. O que significa que há praticamente outro álbum pronto. Houve um momento em que pensei continuar a trabalhar mais dois ou três meses e publicar um álbum duplo. Hão-de acabar por sair. Não vai ser, de certeza, o meu "great lost album".



É uma pergunta um bocado tonta mas, mesmo assim, apetece-me fazer-lha: o que é, para si, um bom tema para uma canção?
As coisas mais incríveis podem tornar-se tema para uma canção. Numa das que escrevi, o ponto de partida foi o facto de, há alguns anos, os meus vizinhos do andar de baixo serem um casal de camionistas gay do sul dos EUA. Tinham brigas inacreditáveis que se tornavam ainda maiores porque consumiam álcool e drogas em quantidades industriais. Um dia, estava a trabalhar com o meu gravador de quatro pistas e, lá em baixo, a coisa estava a ficar bastante violenta: um deitava abaixo uma porta à machadada, agrediam-se com os insultos mais incríveis, era uma gritaria pegada. Saí para dar uma volta e, inadvertidamente, deixei a fita a gravar. Quando regressei tinha ficado tudo perfeitamente registado, de tal modo eles berravam. Cheguei a pensar incluir na canção um fragmento dessa gravação mas, entretanto, perdi a fita, não sei onde foi parar. O pior é que, do outro lado, estava uma hora de canções que eu tinha estado a gravar. Provavelmente, alguém as há-de ter. Esse é que há-de ser o "great lost gay truckers album"...



Quando começou a compôr, sentia-se próximo de alguma cena musical, existia algum tipo de música que, geracionalmente, lhe falasse ao coração?
Há dez anos, ouvia coisas como os Sonic Youth, Nirvana e Mudhoney. Mas nunca senti nenhuma relação de proximidade estética ou geracional com esses ou outros músicos. Nunca houve aquele espírito de afinidade ou intimidade como o que existia entre os Beatles, os Stones e os Kinks que andavam sempre juntos e se influenciavam e estimulavam mutuamente. Ou como aconteceu, nos anos do punk, com as bandas de Nova Iorque. Não era uma cena estruturada e culturalmente orgânica.



Falando de cenas musicais, em Mutations, a canção "Tropicalia" refere-se explicitamente aquele movimento brasileiro dos anos 60, o Tropicalismo, que, só agora, com uma série de reedições em Inglaterra e nos EUA, começa a ser redescoberto. Isso teve, em relação a si, uma influência importante?
Desde Mellow Gold, sempre que me perguntam quem são os meus cantores preferidos, respondo: Willie Nelson, Caetano Veloso e Jorge Ben. Depois, claro, aparece só o nome do Willie Nelson e os outros dois são esquecidos. Já aconteceu em centenas de entrevistas! Mas eu faço sempre questão de falar dessa música brasileira que era tão "cool" e tão avançada para a sua época. Foi uma questão de tempo até começar a ser redescoberta. Há cerca de dois meses, o Caetano Veloso deu um concerto em Los Angeles e convidou-me para ir ao palco cantar duas canções com ele. As pessoas adoraram. Sabiam que o concerto iria ser bom mas não faziam ideia das razões por que ele é escutado há trinta anos.

E, no entanto, depois das colaborações de Caetano com Arto Lindsay ou de Marisa Monte com Laurie Anderson e do trabalho de divulgação da música popular brasileira de David Byrne, seria de esperar que isso não fosse já uma surpresa tão grande...
Pois é, mas foi preciso esperar pelo momento cultural adequado. Às vezes, é preciso quase um século. É o tipo de música que tem de aguardar na sala de espera pela chamada para a consulta. (1999)

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