COMO FUNCIONA O MUNDO
Life On A String, de Laurie Anderson, é, certamente, um dos grandes discos do ano. E do qual, com a própria autora, em directo de Nova Iorque — numa conversa atravessada por problemas de comunicação ainda decorrentes do atentado de 11 de Setembro — apetece falar. Interminavelmente.
Estávamos à espera que Life On A String fosse uma transposição para disco do seu espectáculo Songs And Stories From Moby Dick. Afinal, o que a fez mudar de planos?
De facto, já passei outros espectáculos para disco. Mas neste não resultava bem, era muito aborrecido. A música, sem as imagens, não se adequava a um disco. Esforçámo-nos muito para que pudesse funcionar mas tivemos de admitir que não era possível. Nesse momento, mudei a orientação do disco. De qualquer modo, o espectáculo irá aparecer em DVD.
No espectáculo baseado nesse gigantesco livro de Melville, como fez para seleccionar os aspectos que queria tratar?
Li o livro cinco vezes. Na primeira versão, acompanhava as personagens muito mais de perto. Até que me apercebi de que o que gosto mais no livro de Melville são as histórias e não as personagens, a forma como ele muda de paisagens e de "voz" tão rapidamente. O capitão Ahab e a sua obsessão nunca me convenceram. Aliás, ele não existia na versão original, foi um acrescento posterior à história por sugestão do editor que lhe disse "Falta aqui qualquer coisa senhor Melville, que tal um capitão louco?" (risos) Daí que me tenha centrado mais naquelas histórias estranhas sobre calotes polares, geografia... Foi pela linguagem que ele me agarrou. Muita dela soava-me como textos de canções. Mas, no final, compreendi que aquele livro não precisava de ser transformado num espectáculo multimedia. No entanto, como já me tinha apaixonado por ele, segui em frente.
Apesar disso, guardou algumas canções para o álbum...
Nenhuma delas, à excepção de "Here With You", ficou exactamente igual ao que era em palco. Usámos mais cordas do que no espectáculo onde quase tudo assentava na electrónica, no baixo e violino.
O que é, aliás, uma das características do álbum: usa muito mais cordas e o seu violino do que era hábito...
Um amigo designer de instrumentos enviou-me o protótipo de um violino eléctrico. Na altura, estava mais virada para a electrónica mas acabei por o achar fantástico e muito portátil. Subitamente, foi uma experiência muito física. Por isso, desta vez, escrevi muito mais no violino.
Outro aspecto interessante de Life On A String é que ele parece procurar um terreno intermédio entre Strange Angels, que se arriscava no formato canção, e Bright Red onde prevalecia o "spoken word"...
Estou de acordo. Foi assim que saiu muito por causa do violino. A pequena digressão que fiz na Europa e nos EUA fez-me compreender muitas coisas acerca da estrutura melódica do disco que é muito mais flexível do que supunha. De qualquer modo, quando começo a trabalhar num disco, nunca tenho nenhuma estratégia.
O título, Life On A String, e as palavras da própria canção ("but me I'm looking for just a single moment so I can slip through time") parecem ser uma alusão ao instante do satori no budismo zen...
Gostava de lhe poder dizer que sim mas parece-me que não. Isso refere-se à forma muito introspectiva como, nesse momento, escrevia, passeando, durante o Verão, com o meu cão e dando-me conta de como tudo era espantosamente belo. E tentando compreender, como é, de facto, habitar um momento.
O que não anda muito longe do satori...
(risos) Se calhar. Eu estudo o budismo mas não sou uma estudante muito brilhante...
Quando, a propósito do atentado ao World Trade Center, Stockhausen afirmou que se teria tratado da "maior obra de arte de todos os tempos", não pude deixar de me lembrar do que dizia em "The Cultural Ambassador", citando Don De Lillo, acerca de os terroristas serem os únicos artistas que restam pois já só eles são capazes de nos surpreender. Voltaria a dizê-lo?
Essa era uma ideia que, na altura, me intrigava. Mas devo reconhecer que é uma ideia ridícula afirmar que eles ainda são os únicos capazes de nos surpreender. Ficámos todos em estado de choque e essas declarações do Stockhausen são desconcertantes. Pareceu-me muito despropositado procurar chamar a atenção sobre si próprio nestas circunstâncias. A questão, quando se escreve sobre estética e política, é que a política e a arte estão sempre a mudar. Há um tempo e um lugar certos para abordarmos certas ideias que não são sempre necessariamente verdadeiras. É como se, num funeral, alguém, de súbito, se levantasse e dissesse "Nem sei o que estou aqui a fazer, ele não passava de um idiota!" (risos) É curioso como uma coisa tão chocante pode mudar a nossa forma de ver as coisas. Até nas coisas mais simples aprendi a descobrir o essencial. A propósito de budismo, a única coisa que, para mim, fez sentido foi o que, acerca desta situação, disse o Dalai Lama: "Os nossos piores inimigos são os nossos maiores amigos. Porque nos ensinam coisas". E eu pensei, "O que será que eles nos ensinaram?" E foi muito! Em muitos sentidos, Nova Iorque tornou-se um lugar espantoso onde as pessoas genuinamente pensam sobre as coisas. O que é algo muito novo! Saímos de uma década muito interessada no poder e no dinheiro e as pessoas estão a compreender que isso não é tudo. Muitos amigos meus andavam em Greenwich Street, mesmo ao pé de onde o avião caiu, assistiram a todo o horror, e a verdade é que a reacção predominante não é de vingança mas sim de desejar que uma coisa destas nunca mais possa voltar a acontecer, nem ao nosso pior inimigo. Nesse sentido, realmente, foram capazes de nos surpreender. Ultrapassaram mesmo Hollywood.
No "site" da Amazon, descobri uma "customer review" de Life On A String muito especial: "Estava em Chicago a escutar Life On A String no meu discman quando os jactos atingiram o World Trade Center. Pressentindo que algo estava errado pela forma como, à minha volta, as pessoas se comportavam, tirei os auscultadores enquanto 'Slip Away' estava a tocar. Ao som daquele requiem, ouvi as notícias que um transeunte me leu no ecrã do seu telemóvel. Durante toda a semana, voltei a esta música uma e outra vez. Na música, nas imagens do texto, vi toda a nação como o Pequod, assombrado pela tristeza. Vi Melville nas ruas de Nova Iorque, esgravatando nas cinzas,as almas dos que partiram vagueando à beira da estátua da Liberdade. É como se Laurie Anderson adivinhasse o que se iria passar. De certa forma, adivinhou. Tal como todos nós". Algum comentário?
Incrível! Espantoso! Uff!... Especialmente esses comentários acerca de Melville... Ele era um novaiorquino que já morreu há muito tempo. Em Londres, estavam a fazer um documentário sobre ele e perguntaram-me o que teria ele pensado deste desastre. Pareceu-me uma pergunta bizarra. Mas, depois, pensei acerca dos projectos para o monumento que há-de ser construido. Um é um novo WTC vazio e o outro são duas enormes colunas de luz, o que me parece que o Melville adoraria: duas coisas quase invisíveis, enormes, brancas como a sua baleia, que simbolizam a realização, o desejo, a saudade e a destruição. Mas não me parece que ninguém pudesse ter adivinhado isto. A coisa mais impressionante foi o choque simultâneo que toda a gente sentiu. O que não é nada a forma como o mundo funciona.
Uma das frases mais assustadoras de Life On A String é "freedom is a scary thing, not many people really want it" que me recordou do "Give me back the Berlin Wall, give me Stalin and St. Paul, I've seen the future and it's murder" do Leonard Cohen. Como se, para muita gente, a necessidade de segurança fosse mais importante do que a liberdade...
É verdade. Por acaso, nesta digressão modifiquei essas palavras. Quando escrevi isso, tinha falado com muitos estudantes que me confessavam como tinham medo de tomar esta ou aquela atitude por receio da opinião que o Papa, os pais ou os amigos tivessem acerca deles. Disse-lhes, "Não me levem a mal, mas a verdade é que ninguém liga nenhuma ao que vocês fazem. O mundo não está com os olhos em cima de nós para ver o que fazemos. Não fiquem deprimidos: isso quer dizer que são livres de fazer o que quiserem e não aquilo que pensam que os outros esperam". E, de facto, tomar em mãos a própria liberdade e usá-la, mete muito medo. Mas como, durante os concertos, as circunstâncias se modificaram drasticamente passei a cantar "freedom is a scary thing, so precious, so easy to lose".
Descobri que tinha iniciado uma carreira como caixa do McDonald's da Chinatown de Manhattan. É mesmo verdade?
É. Só lá trabalhei umas semanas. Não foi nada do que eu esperava. Interessava-me a ideia da produção em massa e de como, numa lindíssima cidade italiana, pode surgir um horrível McDonald's de que as pessoas gostam. A verdade é que, ao contrário do que pensava, correu tudo muito bem. Sendo o que é — um local para pessoas que não têm muito dinheiro — acaba por ser um sítio feliz e divertido. Entrei com uma atitude cínica e snob e acabei por me divertir. (2001)
09 September 2007
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"O que é o Zen?" com sensei Amy Hollowell
Em Coimbra, palestra, sexta-feira dia 28 de Setembro, às 19h
Local: no edifício da Associação Académica de Coimbra, auditório Salgado Zenha entrada livre
No Porto, sábado dia 29 de Setembro, das 10h às 17h
Programa: introdução ao Zen, introdução à prática da meditação
Local: UBP Porto, rua da Restauração, 463, 2.º Porto
Contribuição: €30 (estudantes e membros €25)
Em Lisboa, domingo dia 30 de Setembro, das 14h30h às 17h30
Programa: introdução ao Zen, introdução à prática da meditação
Local: UBP Lisboa, Calçada da Ajuda, 246, 1o dto 1300 Lisboa
Contribuição: livre
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