24 June 2007

ENTRE AS TREVAS E O HOMEM
 

Vários - Plague Songs
 
O demiurgo Jeová do Antigo Testamento era uma entidade com um mau feitio impossível de aturar e sempre pronto para, ao mais pequeno pretexto – qual funcionário superior de uma qualquer direcção-geral –, encenar portentosas exibições de poder e fúria que, invariavelmente, se socorriam de todos aqueles efeitos especiais que a indústria dos “blockbusters-de-catástrofe” de Hollywood se empenhou a copiar e desenvolver com admirável aplicação. A aniquilação de Sodoma e Gomorra (que, aliás, no original hebraico, se conclui com uma edificante sequência porno XXX entre um velho pai e as duas fogosas filhas) é, sem dúvida um dos seus melhores momentos mas nem esse ultrapassa o genial épico em dez capítulos das “pragas do Egipto” (Êxodo, 7-10): antecipando algumas técnicas modernas de guerra psicológica e lançando, ao mesmo tempo, as primeiras brasinhas para o actual conflito no Médio Oriente, Jeová (intercedendo pelos israelitas cativos) intimida o faraó com uma anteestreia artesanal do célebre “shock and awe” envolvendo, sapos, gafanhotos, piolhos, trevas e infanticídios avulsos. 



Foi justamente esse o tema escolhido pela Artangel (um colectivo dinamizador de projectos artísticos) para, a 30 de Setembro do ano passado, dar corpo ao Margate Exodus, um evento de um dia que teve lugar nesse “seaside resort” do Sul de Inglaterra, também ponto de entrada de eleição para emigrantes ilegais. Explorando tópicos como identidade, tolerância e a busca da igualdade social na “terra prometida”, o Exodus incluiu actividades ao vivo, a rodagem de um filme (realizado por Penny Woolcock) e a publicação de Plague Songs, um álbum em que, a cada um dos músicos intervenientes, foi oferecido o tema de uma das dez pragas como mote de criação. Isto é, o conhecido método-Hal Willner que, muito, naturalmente, também esteve envolvido no processo. E que, adiante-se já, se não produziu um álbum uniformemente memorável, contém preciosidades suficientes para que não passe despercebido. Por outras palavras, “The Meaning Of Lice” é, segundo Stephin Merritt, uma “heresia necessária” (“ou os piolhos não existiam no Jardim do Éden – e são uma prova da teoria da evolução – ou existiam e aquilo não era nenhum paraíso... mais ou menos a história original mas com um ‘disco beat’”) e um magnífico exercício de ironia, “Flies”, de Robert Wyatt e Brian Eno, paira como uma maldição imaterial, em “The Fifth Plague”, Laurie Anderson, como quem observa do alto, hesita entre o horror e o fascínio cenográfico da morte do touro na arena (“beasts of the field, we stand somewhere between darkness and man”), “Darkness”, de Scott Walker, é um quase-gospel caricatural e grotescamente esquelético mas estranhamente arrepiante e “Glittering Cloud”, por Imogen Heap, uma coreografia bipolar deliciosamente frívola. Os restantes (Klashnekoff, King Creosote, Cody Chestnutt, The Tiger Lillies e Rufus Wainwright) não estarão exactamente à mesma altura mas a metade que importa mais do que compensa o desequilíbrio. (2007)

2 comments:

Anonymous said...

Eish! Isto lembra-me logo o Charlton Heston...

João Lisboa said...

Pois...