Nick Cave & The Bad Seeds - The Boatman's Call
"Ali, naqueles quatro maravilhosos poemas em prosa de Marcos, Mateus, Lucas e João, lentamente voltei ao convívio com o Jesus da minha infância, aquela figura etérea que se move através dos Evangelhos, o Homem do Arrependimento. Foi através dele que me foi oferecida a oportunidade de redefinir a minha relação com o mundo. A voz que fala agora através de mim é mais suave, mais triste, mais introspectiva".
É verdade, acreditem ou não, foi Nick Cave que afirmou isto há muito pouco tempo aos microfones da BBC. O mesmo Nick Cave que, exactamente há um ano, punha os leitores de CD a escorrer sangue e vísceras esquartejadas quando se escutavam as suas Murder Ballads e que, até aqui, era particularmente notório por preferir uma visão do mundo bebida nas leituras de um Velho Testamento habitado por profetas alucinados e por um Deus sádico, violento e vingativo, distribuindo pragas e maldições por uma Humanidade pecadora e aterrorizada, esse mesmíssimo Nick Cave descobriu Jesus Cristo e o Novo Testamento. Por outras palavras, o ex-junkie trocou a heroína por Deus e, se não me engano, estou a ouvir alguém dizer a frase "a religião é o ópio do povo".
Inevitavelmente, isso não poderia deixar de ter consequências de forma e conteúdo no novo disco, The Boatman's Call, que agora é publicado. Se é verdade que os tempos de imenso som e basta fúria dos Birthday Party já há muito haviam passado à História, substituidos por uma cada vez mais acentuada inflexão no sentido de um "crooning" clássico mas ainda consideravelmente assombrado (em Murder Ballads a estética "gore" desenhada a traço bem grosso era ainda dominante), nada faria, porém, prever uma tão súbita conversão. Porque é, de facto, de uma conversão que se trata. Aquilo a que ele, neste momento, se entrega, como refere explicitamente o "press release", é à edificação de uma "passion suite" reflectindo "a busca eterna da fé, tanto pessoal como espiritual, desviando a atenção do mundo dos vícios para desafiar as virtudes do amor" por meio da escrita "de canções de amor, devoção e esperança com a serenidade e solenidade que assentariam bem a um hino".
Nem mais. O trabalho dos escribas de serviço da editora praticamente torna redundante a função crítica de tal modo The Boatman's Call se ajusta como uma luva a essa caracterização. Em andamento invariavelmente lento e processional, doze canções revelam um Nick Cave cristão-novo e uns Bad Seeds (piano, suavíssimos acordes de orgão, vibrafone e violino e é tudo) reduzidos ao papel de discretíssimos acompanhantes da Voz-Que-Conversa-Com-Deus citando o Evangelho gnóstico de Tomé ("There is a kingdom, there is a king, and He lives without and He lives within and He is everything"), apaziguando as desventuras do amor terreno com a felicidade celestial, serenando a repulsa que, apesar de tanta fé, a Humanidade lhe continua a provocar ("people just ain't no good, I think that's well understood, you can see it everywhere you look, people just ain't no good") com a espera de um chamamento divino que não tardará.
À maneira de um Leonard Cohen menos embriagado por uma espiritualidade hereticamente sensual e ainda excessivamente preso dos reflexos de uma conversão recente, The Boatman's Call, por estranho que possa parecer, é um optimo disco "bluesy" e melancólico. Embora decididamente não recomendado a ateus e agnósticos demasiado rigorosos. (1997)
09 February 2007
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