Lou Reed - Ecstasy
Patti Smith - Gung Ho
Nick Cave - The Secret Life Of The Love Song/The Flesh Made Word
Patti Smith sempre foi uma punk um bocado hippie. Lou Reed sempre foi um anti-hippy bastante punk. Nick Cave sempre foi um punk francamente bíblico. E, como se sabe, não é fácil ao leopardo perder as suas pintas. Deve ser essa a razão por que, umas dezenas de anos e outros tantos álbuns depois do início da carreira de qualquer dos três, eles permanecem fundamentalmente iguais a si mesmos. As ausências, os mais ou menos longos períodos de silêncio, as transformações e as convulsões que cada um atravessou não fizeram senão reforçar a ideia de que, mesmo sendo a personalidade individual uma ilusão razoavelmente volátil, eles mais do que ninguém contribuem para alimentar essa ilusão.
Desde 1989 e New York que Lou Reed desaprendeu por completo como se grava um mau álbum. E, não só o fez, como ainda aproveitou para publicar peças obrigatórias como Songs For Drella (1990, com John Cale) ou Magic And Loss (1992). De caminho, adquiriu aquela espécie de controlo de qualidade automático que o autoriza a publicar regularmente discos numa língua morta — o rock — capazes de se escutarem como quem lê os clássicos no original, em latim. Ou não terá sido ele um dos que contribuiram decisivamente para formular as regras gramaticais deste "latim"?
Ecstasy entende-se, então, melhor assim: Lou Reed, o eterno "scholar" da justa medida — isto é, quatro partes de excesso para uma de ascese — do idioma popular mais falado do século XX, dirige-se ao seu público e reafirma e defende o "falar correcto" perante as suas inúmeras deturpações contemporâneas. O que, naturalmente, implica as doses apropriadas de secura, electricidade e ruido (Mike Rathke, Fernando Saunders e Tony "Thunder" Smith — com aparições ocasionais de Laurie Anderson e superior co-produção de Hal Willner — não estão lá para outra coisa), clássicos instantâneos do "sleazy one liner" ("the two whores sucked his nipples till he came on their feet" ou "I got a hole in my heart the size of a truck, it won't be flled by a one-night fuck" não deixam dúvidas que Lou Reed ainda não chegou ao momento de se dedicar à filatelia...) e a ocasional "self indulgence" aqui representada pelos dezoito minutos de "Like A Possum", a fazer recordar de onde surgiram todos os Sonic Youths, My Bloody Valentines e Jesus & Mary Chain deste mundo — White Light/White Heat diz-vos alguma coisa?
Gung Ho, de Patti Smith, entretanto, é exactamente o disco de "maturidade avançada" que seria de esperar do tipo de personagem que transportou para o interior da revolução punk norte-americana aquela espécie de suposta "poesia visionária" que celebrizou Jim Morrison, acrescentada da pose de "earth mother" teluricamente mística e hereticamente revolucionária. Não dispõe muito bem — a não ser para quem esteja mesmo para aí virado... — começar um álbum com a frase "In the garden of consciousness, in fertile mind there lies the dormant seed" numa canção dedicada a... Madre Teresa de Calcutá e não ajuda nada que a seguinte ("Lo And Beholden") seja apenas "Because The Night" sob outro nome.
Mas a sinceridade e honestidade óbvias de Patti Smith (e o que o sábio Oscar Wilde não diria para demolir, sílaba por sílaba, este argumento...) contribuem um pouco para absolver aquele que não é, de certeza, um dos seus melhores álbuns, mesmo do período de "come back" pós-Gone Again. Além de que, pelo menos, a memória dos alucinantes dez minutos de "Horses" no último episódio de "Millenium", dificilmente permitiriam arrasar a co-autora desse gigantesco videoclip difícil de esquecer.
Finalmente, The Secret Life Of The Love Song é, tão só, um dos melhores álbuns de Nick Cave de sempre. Em que ele apenas canta cinco canções ("West Country Girl", "People Ain't No Good", "Sad Waters", "Love Lettter" e "Far From Me") e ocupa o resto dos 65 minutos de duração total com a leitura dos textos de duas conferências — uma apresentada no Festival de Poesia de Viena de 1998 e outra emitida pela Radio 3 britânica — dedicadas ao modo como entende a génese da canção de amor e a sua apreciação (e determinante influência na música que escreve) dos textos bíblicos do Velho e Novo Testamentos.
E, como no mais extraordinário dos seus álbuns, o tempo decorre sem se dar por ele, ouvindo-o, num puríssimo exercício de inteligência e sensibilidade, associar Tom Waits com Leonard Cohen, Dylan, Kylie Minogue e os Boney M, o "duende" de Garcia Lorca com a saudade do fado português, o sanguinário Jeová judaico com a música dos Birthday Party e tudo isso e a sua inesperada circunstância de "lecturer" com a magoada memória do pai, um precocemente desaparecido professor de literatura inglesa de Melbourne. (1998)
09 February 2007
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