10 February 2007



Jack Kerouac/Vários - Reads On The Road
 
 
 
 
Lawrence Ferlinghetti/Dana Colley - A Coney Island Of The Mind
 
 

 
Nick Cave/Mick Harvey/Ed Clayton Jones - And The Ass Saw The Angel

Naqueles anos da segunda grande guerra em que o bebop nascia no nº 210 da West 118th Street, em Upper Manhattan, onde se localizava a Minton's Playhouse, um dos frequentadores mais assíduos era um "scat singer" e ocasional executante de bongos, de seu nome Jack Kerouac. Dizzy Gillespie chamava-lhe "that Frenchman" (ele era de ascendência franco-canadiana) e chegou a intitular um dos seus arranjos "Kerouac". Com a companheira da altura, Edie Parker, batia os clubes do Harlem, convivia entre "sets" com Billie Holiday, partilhava copos com Lester Young, Coleman Hawkins e Charlie Parker e, aí mesmo, modelaria o seu estilo de escrita (é verdade, Jack, para além de místico cristão/budista, "lonesome traveller", devoto de anfetaminas, cannabis e alcoólico, era escritor) que — em especial, no clássico On The Road, recentemente considerado pela Modern Library um dos 100 romances do século — procurava reproduzir o método espontâneo e "automático" de improvisação do jazz da época. Nomeadamente o de Bird, (como ele próprio referia), "blowing a phrase on his saxophone till he runs out of breath, and as he does, his sentence, his statement's been made...and that's how I separate my sentences, as breath separation of the mind". Pelo caminho, literalmente pelo caminho (com William Burroughs, Allen Ginsberg, Gregory Corso, Neal Casady e outros), criou a "beat generation" — isto é, inventou a matriz de todos os modelos culturais "alternativos" que iriam dominar a segunda metade do século — e ganhou merecidamente a qualificação de "spontaneous bop prosodist".

 
Jack Kerouac Reads On The Road revela, entretanto, aquela sua faceta que (tal como o anterior Kerouac-Kicks Joy Darkness, de 1997, aliás, como este, produzido por Lee Ranaldo, dos Sonic Youth) ajuda a reavaliar algumas das nem sempre reconhecidas debilidades da sua obra-escrita-nas-páginas-dos-livros. Pela muito simples razão de que a maioria dos textos de Kerouac, ainda que impressos e publicados, eram concebidos de acordo com a antiquíssima tradição da musicalidade da palavra dita ao vivo, com ou sem (mas frequentemente com) acompanhamento musical, de acordo com a tal "breath separation of the mind" como pontuação natural e orgânica. Tão inspirado pelo bebop como pela escrita automática de William James e dos surrealistas, pelos "trance poems" de Yeats, os happenings do Black Mountain College, as gravações de "spoken word" de Carl Sandburg, Dylan Thomas e Langston Hughes ou a pintura de Jackson Polllock, no Outono e Inverno de 1957, Kerouac recitaria alguns dos seus textos em público no espaço de diversos clubes do Greenwich Village, na sequência do que gravaria os álbuns Poetry For The Beat Generation, Blues And Haikus e Readings By Jack Kerouac On The Beat Generation (este recentemente republicado em CD pela Verve/Polygram em luxuosa edição).  O que, agora, porém, se recolhe são tanto ignoradas interpretações suas propriamente musicais — ao lado de instrumentistas não identificados — carregadas de um inesperado humor de crooner talentoso ("Ain't We Got Fun", "Come Rain Or Shine", "When A Woman Loves A Man" e "Leavin' Town" não se comparam desfavoravelmente com Chet Baker, Armstrong ou... Bob Dylan), como excertos das suas leituras de "On The Road", "Orizaba 210 Blues" e "Washington D.C. Blues", só com voz ou acompanhado pelos magníficos cenários sonoros de David Amram e John Medeski que simultaneamente colocam em evidência a tal música interior latente nos textos e sublinham o seu sentido. A fechar, um previsível (mas sempre excelente) Tom Waits, com os Primus, na qualidade de homenageante que deve quase tudo ao homenageado.
 
No mesmo registo se situa o CD de A Coney Island Of The Mind, a mítica colecção de poemas de 1958 de Lawrence Ferlinghetti, ele próprio "beat" ilustre e editor — através da sua City Lights Books — de quase todos os outros "beats", aqui lendo muito burroughsianamente (isto é, hipnoticamente) a sua poesia envolvida pelas improvisações no saxofone de Dana Colley (dos Morphine) e de um conjunto de outros músicos que estabelecem uma admirável ponte entre o espírito da era original e os tempos actuais. O que, tal como acontece com o melhor de Kerouac, chama inevitavelmente à conversa a desagradável (mas, neste caso inteiramente apropriada) palavra "intemporal". 
 
 
A comprovar, ao mesmo tempo, o fascínio do texto lido e a contribuição decisiva da "beat generation" para a forma como hoje encaramos esse género, fica, entretanto, And The Ass Saw The Angel, album de leituras de Nick Cave do seu romance com o mesmo título, acompanhado da "banda sonora" adicional de Mick Harvey e Ed Clayton Jones e da música incidental para a dramatização que, dele foi realizada. Cave é um superlativo "songwriter" e intérprete mas, na única tentativa novelística, revelou ser pouco mais do que um descendente menor e tardio do "sulismo" literário de Flannery O'Connor e Faulkner. Na sua voz inconfundíel (e na atmosférica música/sonoplastia que a enfatizam), contudo, tudo parece ganhar uma superior dimensão que, decerto não por acaso, recorda fortíssimamente o ambiente dramático do melhor álbum de "spoken word" português, Müller no Hotel Hessischer Hof, dos Mão Morta. A voz ressoa adequadamente apocalíptica e todo o bíblico dramatismo alucinado ecoa com uma intensidade que, na página escrita, era pouco mais do que caricatural. Afinal, lá está, a lição aprendida com os "beats"... (1999)

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