NO NÚMERO DOS VIVOS
Bob Dylan - Modern Times
A 13 de Julho de 1993, Bob Dylan actuou pela primeira vez em Lisboa, mais exactamente, no pavilhão de Cascais. A abertura, entregue a Laurie Anderson, com o concerto a começar ainda sob uma forte luz de Verão, para um público de escassas dezenas, parecera bizarramente deslocada, servida como prelúdio a uma tardia consagração nacional do autor de “Like A Rolling Stone”. Finalmente, Dylan entrou em palco. “Hard Times” não foi um começo feliz: banda tropegamente roqueira, som de pesadelo, Bob Dylan aparentemente desinteressado e maquinalmente ausente. “Memphis Blues Again” e “All Along The Watchtower” acentuaram desastradamente o plano inclinado. Após uns “Just Like A Woman” e “Tangled Up In Blue” pouco menos do que irreconhecíveis, levantei-me e saí do pavilhão do Dramático. Por respeito ao Dylan que admirava, não toleraria ver “aquele” a desmoronar-se à minha frente. Como regista um “bootleg” então gravado, o último tema foi – triste ironia – “It Ain’t Me Babe”. Por essa altura, o que, no primeiro volume das suas Chronicles, é apontado como o “álbum da redenção” – Oh Mercy – tinha já quatro anos e o seguinte e, de novo, esquecível, Under The Red Sky, três.
Mas, ao Dylan daquele concerto poderiam continuar a aplicar-se, sílaba por sílaba, as palavras que ele próprio, sobre si, escreveria, acerca da longa noite da década de 80: “Inúmeras vezes, quando me abeirava do palco, antes de um concerto, parava e pensava que não estava a cumprir a palavra que, a mim mesmo, havia dado. Qual era essa palavra, não me conseguia recordar precisamente, mas sabia que, algures, havia uma. (...) Uma pessoa estava desaparecida dentro de mim e eu necessitava de a encontrar. (...) Era um trovador dos anos 60, uma relíquia do folk-rock, um artesão da palavra de tempos idos, um chefe de estado fictício de um lugar que ninguém conhece. Estava no poço sem fundo do esquecimento cultural”. Na verdade, haveria ainda que esperar quatro anos para que, com Time Out Of Mind (1997), Dylan saísse do poço e, com Love And Theft (2001), respirasse de novo.
O muito chaplinescamente intitulado Modern Times confirma-o indiscutivelmente no número dos vivos: a música reanima uma bissectriz ideal entre Highway 61, John Wesley Harding e memórias ainda mais antigas, a banda aspira o mesmo sopro vital dos lendários Al Kooper ou Mike Bloomfield e Bob Dylan, a um tempo, amargo, sarcástico e assombrado, rubrica uma vibrante colecção de dez canções da qual, pelo menos quatro, deverão entrar, de imediato, para o seu cânone: “Thunder On The Mountain” (“gonna raise me an army, some tough sons of bitches”), o desafio de “Spirit In The Water” (“you think I’m over the hill, think I’m past my prime, let me see what you got, we can have a whoppin’ good time”), a muito waitsiana “When The Deal Goes Down”, e, acima de todas, a derradeira “Ain’t Talkin’”, deambulação sonâmbula pelas “cidades da peste” onde, qual oráculo dos últimos dias, deixa escapar ameaças e maldições como “now I’m all worn by weeping, my eyes are filled with tears, my lips are dry, if I catch my opponents ever sleeping, I’ll just slaughter them where they lie”. Sim, este é Bob Dylan. (2006)
28 January 2007
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3 comments:
eu vi esse concerto.
mal imaginava, quando estava a ouvir a laurie anderson, que isso seria o melhor desse concerto.
(já não me recordo, mas, se não me falha a memória, acho que ainda deveria ter havido sérgio godinho antes, mas não chegou a actuar)
a voz (ainda mais naquele dia me pareceu, se é que é possível) extremamente nasalada, de vez em quando uns 3 ou 4 passos atrás para mais uma snifadela e o arraasto do personagem até ao desespero dos presentes.
o que eu estava procurando, obrigado
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