11 April 2022

UMA VOZ FEITA DE MUITAS VOZES 

Ainda procurávamos espreitar por entre as palavras (“A noite entrelaça seus riscos de sombra, e luzes no escuro são quase penumbra, são gestos de gestos, no afã do afã, parece um Pollock sonhando a manhã”) quando, como quem pensa alto, Amélia Muge deixa cair “Este disco está um bocadinho entre o canto dos Neanderthal e o HAL 9000 do 2001 Odisseia no Espaço”. Ela (e o co-autor António José Martins) já tinham esclarecido que, para um exercício de audição assistida de Amélias – 12º volume de um percurso iniciado em 1992 com Múgica –, nunca se trataria de “explicar os temas mas de falar acerca das ideias de base sobre as quais foram contruídos”. Largámos, então, o Paleolítico Superior, a "action painting" e Van Gogh, Miró e Chagall com quem já nos havíamos cruzado antes, e, entrando pelo labirinto dentro, a propósito de "Chove Muito, Chove Tanto" (com texto da irmã, Teresa Muge), os contornos tornam-se um pouco mais nítidos: “Este texto da Teresa remeteu-me muito para as minhas memórias de infância. Eu não comecei como os outros meninos. O meu universo musical não foi o do que ‘estava a dar na rádio’ mas o de gente que, em Moçambique, cantava à minha volta.



As minhas primeiras memórias do canto colectivo são, quando tinha cerca de três ou quatro anos, ter ido para um miradouro de Maputo de onde se via um mar fantástico, com as várias amas negras – umas 20 ou 30 – dos vários meninos e onde elas cantavam em lingua ronga e dansavam. É evidente que não me lembro nada do que elas faziam, isto já é uma invenção, uma pura ficção, sobre uma experiência que eu sei que vivi. Quis fazer recuando eu, como personagem, aquele tempo. Até porque, se calhar, as memórias que tenho não correspondem exactamente ao que elas faziam mas aquilo que eu, com aquela idade e sendo de outra cultura, consegui absorver como experiência sonora fortíssima”
. (daqui; segue para aqui)

2 comments:

Anonymous said...

Só uma correção: é Hal 9000. 😁

João Lisboa said...

Claro que é. Obrigado.