12 October 2020

REAPRENDER A ESCREVER


Vai ser necessário “reconstruir a América praticamente a partir de zero” depois dos quatro anos no poder de “um criminoso patético e transparentemente maligno”, diz Matt Berninger, dos National, no momento em que se prepara para publicar o primeiro álbum a solo, Serpentine Prison, produzido pelo lendário Booker T Jones. A partir de Venice, Los Angeles, o presente não é propriamente animador mas Berninger confia que o futuro não há-de ser irremediavelmente negro.  

    Como têm sido estes últimos meses? Tem estado em confinamento? 

Isto, por aqui, está muito mal. A Califórnia é o estado com maior número de casos. E estamos, praticamente, em “lockdown”. Não estamos em quarentena todo o tempo mas usamos sempre máscara. E não há propriamente grande actividade. 

    Para os músicos estes tempos são particularmente estranhos... 

Tenho escrito bastante. Mas tudo muda muito rapidamente. Toda a gente tem de repensar a forma como lida com a vida. Foi tudo virado de pernas para o ar. Não parou apenas a indústria musical, parou praticamente tudo. Tem sido uma situação dramática. Não é possível planear coisa nenhuma. Não faço a mais pequena ideia de quando puderá fazer-se um concerto dos National a sério. Não consigo imaginar um concerto sem 10 000 pessoas que eu possa tocar e sobre quem possa mergulhar, coberto de amor e saliva. (risos) Tenho muito medo de que tenhamos de esperar ainda muito tempo até que isso possa acontecer. Entretanto, toda a gente tenta descobrir formas de sobrevivência enquanto a Natureza não nos oferece uma solução. Estamos a pensar tocar em clubes muito pequenos que correm o risco de fechar. 

    Todas as canções de Serpentine Prison foram escritas antes da pandemia? 

Estavam todas escritas antes do ‘lockdown’. Nenhuma delas foi directamente influenciada pela situação actual. Mas, quando as canções resultam de algum tipo de ansiedade, acabam por ser relevantes para qualquer circunstância atribulada. 

    De qualquer modo, existem referências e alusões bastante explícitas ao estado desgraçado da política norte-americana em “Total frustration, deterioration, nationalism, another moon mission, total submission”... 

Claro que sim. Mas, quando falo do nacionalismo, também posso estar a pensar nos National e “moon mission” pode referir-se a "Return To The Moon", da minha outra banda, EL VY. Quando escrevo, gosto de duplos e triplos sentidos, gosto que a mesma coisa posso ser entendida de formas muito diferentes. 

    Qual é o seu critério para distinguir entre o que será uma canção dos National e outra que poderá incluir num álbum a solo? 

Estou sempre a escrever, nunca paro. Há muitos músicos e autores de canções amigos que me enviam esboços de ideias. Quando o Aaron, o Bryce, o Brian ou o Scott me enviam alguma coisa, será uma canção dos National. Mas, entre Sleep Well Beast e I Am Easy To Find, o Aaron e o Bryce escreveram também toda a música para o musical Cyrano. Por isso, nessa altura, já tinha esgotado todos os esboços de canções que eles me iam enviando. A ideia inicial era gravar um álbum de versões, um pouco inspirado no Stardust, do Willie Nelson. Mas, depois, acabei por pegar nas canções meio alinhavadas que outros amigos me tinham proposto. A ideia nunca foi iniciar outra banda mas dar uma sequência bastante orgânica aquilo que se ia desenvolvendo entre mim e essa comunidade de músicos.

    Mas a própria noção do que são os National não se foi transformando ao longo do tempo? Em I Am Easy To Find, a sua voz, por vezes, praticamente desaparece pelo meio daquela brigada de vozes femininas, os irmãos Dessner e Devendorf têm projectos e colaborações paralelas... Não serão os National, hoje, apenas um ponto de encontro onde, ocasionalmente se juntam para criar música para além daquela com que, individualmente, se ocupam? 

Os National existem quando surge uma ideia ou no momento em que há um certo número de canções a borbulhar. Quando o realizador Mike Mills apareceu com a ideia de fazer um filme em torno do qual se estruturou I Am Easy To Find, tudo se orientou no sentido muito claro de conceber um filme musical e o álbum é quase apenas um subproduto do filme, resultante desse processo de vai e vem entre nós e o Mike. Quando se vê o filme, compreende-se por que motivo a minha voz não está sempre presente. Mas gosto que isso possa ter ampliado a noção do que são os National. No caso do Cyrano, estávamos a compor para personagens específicas o que nos fez aprender ainda uma outra forma de escrever canções. O que, de forma indirecta, acabará inevitavelmente por ter consequências na música dos National. 

    Porque lhe ocorreu convidar Booker T Jones para produzir o álbum? 

Conheci-o há cerca de 12 anos e sabia que ele também tinha produzido o Stardust, do Willie Nelson, que tem uma atmosfera incrível, quase se consegue escutar o som das cadeiras a ranger. Conhece tudo sobre música clássica, blues, jazz, disco, country... A minha intenção era trabalhar com alguém que fosse capaz de se aperceber exactamente de como deveria ser a identidade emocional de cada canção. Quando ele diz que aquela "take" é a "take" certa, ninguém discute. 

    Recordo-me de, numa entrevista anterior, ter dito que prestava sempre muito mais atenção aos textos do que às canções enquanto canções. Neste álbum, dir-se-ia que está no polo oposto: todos os pormenores contam... 

Enquanto gravava estas canções ia também registando algumas das versões em que tinha, inicialmente, pensado e isso fez-me prestar mais atenção à forma das canções e à estrutura das melodias de um modo que nunca antes tinha feito. E pude reparar, por exemplo, como em "Killing Me Softly", da Roberta Flack (uma das grandes canções de sempre), existe o truque estrutural de apresentar logo o refrão no início, e, quando, finalmente, chega o momento “certo” de o escutar, bate-nos de um modo muito mais forte por já termos tido previamentes uma antevisão dele. Estou, realmente, a reaprender a escrever e este álbum permitiu-me concentrar nas melodias e na emoção. As melodias vão atrás da emoção... quando falamos com alguém, a nossa voz sobe para os agudos e desce para os graves em movimentos melódicos. O Booker T estimulou-me a concentrar-me muito nisso. 

    Vai sobrar alguma América depois de Trump? 

É aterrador. Custa a acreditar como uma nação se deixou dominar por um criminoso patético e transparentemente maligno e dói ver a aceitação de tal brutalidade. Teremos de reconstruir a América praticamente a partir de zero mas acredito que o ideal americano mantém a força suficiente para, optando por Biden e Kamala Harris, reinventar o país.

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