GENTRIFICAÇÃO
Em Fevereiro do ano passado, faltavam 8 dias para David Byrne colocar na rua American Utopia, quando, após um post no seu blog em que dava a conhecer os 25 músicos que com ele tinham colaborado, o céu lhe caiu em cima: na caixa de comentários, dezenas de dedos apontavam-lhe o tremendo pecado de, entre os 25, não existir uma única mulher. Dificilmente poderia ter sido escolhido um alvo menos adequado: o álbum anterior (Love This Giant, 2012) havia sido escrito e gravado a quatro mãos com St. Vincent/Annie Clark e Here Lies Love (2010) – uma peça conceptual sobre a figura de Imelda Marcos – registava a participação de duas dezenas de cantoras, de Tori Amos a Natalie Merchant, Sharon Jones ou Shara Worden. Mas (humilde e injustificadamente), Byrne admitiu a terrível falha, pediu desculpa, e garantiu que a disparidade de género era algo que realmente o preocupava. Exactamente o tipo de problemas com que The National não terão de se defrontar agora que I Am Easy To Find, o sucessor de Sleep Well Beast (2017), é publicado: Carin Besser (mulher de Matt Berninger), Pauline de Lassus (alias, Mina Tindle, mulher de Bryce Dessner), Kate Stables (This Is The Kit), Gail Ann Dorsey (ex-baixista de David Bowie, Bryan Ferry, The The, Gang of Four e tutti quanti), Sharon Van Etten, Lisa Hannigan, Mélissa Laveaux e Diane Sorel deverão surgir todas, com destaque variável, no genérico final. E dá-se bastante por isso.
Mas aquilo em que se repara muito também – e que já se pressentia em Sleep Well Beast – é uma espécie de gentrificação da atmosfera mental e criativa da banda que, não por acaso, tem uma correspondência assaz física: I Am Easy To Find foi gravado no Long Pond Studio de Hudson Valley (construído por Aaron Dessner que vive a dois passos, numa quinta do século XVIII), em Upstate New York, um pequeno paraíso rural onde se ouvem os uivos dos coiotes e o coaxar das rãs à beira dos lagos, refúgio dos pintores paisagistas românticos da Hudson River School oitocentista, vizinho da lendária Big Pink da Band, e da comunidade artística e suavemente boémia da acolhedora cidade de Hudson. É o próprio Aaron que, à “Uncut”, estabelece essa relação: “Foi muito importante mudarmo-nos para aqui. Sentimos o legado de todos os artistas que aqui viveram. Divertimo-nos mais, estamos menos tensos e ansiosos. Menos urbanos. Não sei se isso passa necessariamente para a música mas influencia o modo como trabalhamos”. A verdade é que passa, sim. Menos tensos, ansiosos e urbanos é o exacto oposto polar de Alligator (2005) e Boxer (2007). O anti-The National. Laurel Canyon vs. Brooklyn.
Juntemos todas estas peças (e ainda o facto de o realizador Mike Mills – que seria também responsável por um filme de 26 minutos, com Alicia Vikander, complemento visual do disco – ter actuado enquanto produtor heterodoxo) e não será grande ousadia dizer que não se trata verdadeiramente de um álbum dos National mas daquilo a que Aaron chama “a community of voices”. A voz de Matt Berninger cede frequentemente o primeiro plano ou deixa-se afogar no veludo coral das de Gail, Kate, Lisa, Sharon, Pauline, Mélissa, Diane, e do Brooklyn Youth Chorus, os (belíssimos) arranjos de piano, sopros e cordas aconchegam um resignado desassossego (“But I'm learning to lie in the quiet light, while I watch the sky go from black to gray, learning how not to die inside a little every time” ou “Maybe we'll end up the ones who eat chocolate chip pancakes next to a charity swimming pool”) e a tépida "malaise" apenas é perturbada, aqui e ali, pela destrambelhada arritmia da bateria de Bryan Devendorf e por um ou outro raro olhar sobre paisagens menos confortáveis, caso da sublime e quase coheniana "Not in Kansas": “My bedroom is a stranger's gunroom, Ohio's in a downward spiral, can't go back there anymore, since alt-right opium went viral (…) Time has come now to stop being human, time to find a new creature to be, be a fish or a weed or a sparrow, for the Earth has grown tired and all of your time has expired”.
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