CANÇÕES DENTRO DE UM QUARTO
The National - Boxer
Na página The National, do MySpace, pode ler-se: “A banda canta o tipo de sonhos capazes de arruinar vidas e, desses sonhos, cria o tipo de música que as salva”. Que se pode dizer depois disto? Que Leonard Cohen, David Berman, John Cale ou Mark Eitzel nunca fizeram outra coisa senão isso? Que é inteiramente verdade mas que Matt Berninger e os dois pares de gémeos – Dessner e Devendorf – que constituem The National se inscrevem de pleno direito na linhagem dos que padecem dessa magnífica enfermidade mas, aos antecessores, devem apenas o contágio do vírus e pouco ou nada da particular matéria orgânica do espírito onde ele se alojou e, desordenadamente, se multiplica? Que a banda que, há dois anos, publicou o enorme Alligator, acaba de criar para si mesma o gigantesco problema que decorre de, de álbum para álbum, elevar absurdamente as expectativas, e, mais tarde ou mais cedo, já não ter fôlego para pular sobre a impossível fasquia seguinte que deliberadamente estabeleceu?
Tenhamos a decência de ser um pouco menos tontos: nada disso importa. Boxer, agora mesmo, é apenas um dos mais avassaladores álbuns de canções que (em vários desses – e de outros – que ficaram nomeados aí mais acima) essa substância pouco definível que é a poética pop alguma vez conseguiu gerar. Não, por favor, não dêem já o habitual desconto ao vício para a hipérbole crítica: não acontece todos os dias, nem todos os meses, nem sequer todos os anos, desenvolver-se uma tão inquietante e persistente dependência em relação a um disco. Porque inquieta, de facto, apercebermo-nos de uma sanguínea afinidade para com os estados de alma de apática abjecção, para a estetização do “mal de vivre” mais intolerável, para a transfiguração dos pesadelos em licores divinos do esquecimento e da cobarde distanciação metódica. Será, talvez, uma questão de forma (álibi idiota mas convenientemente funcional): Matt Berninger escreve como quem colecciona aforismos desgarrados mas que, improvável e fortuitamente, ganham um sentido superior quando alinhados no corpo de uma canção.
“Underline everything, I’m a professional in my beloved white shirt” não deveria desaguar necessariamente em “Raise our heavenly glasses to heaven! Squalor victoria! Squalor victoria!”, nem o desamparado remate final teria, inevitavelmente, de ser, “This isn’t working, you, my middlebrow fuck-up”, tal como a sequência “Turn the lights out, say goodbye, no thinking for a little while, let’s not try to figure out everything at once, it’s hard to keep track of you falling through the sky, we’re half awake in a fake empire” não se alimenta do veneno do irremediável. Mas que, quando lançados sobre o tropel rítmico de uma marcha/antecâmara para um requiem indolentemente épico ou calcinados a frio pelo frenesim exausto de um Cohen em sobredose de lítium, se diriam desoladoramente evidentes.
Sim, o galope rítmico: melodia e densidades tímbrica e harmónica não escasseiam em Boxer mas é a bomba cardíaca de Bryan Devendorf que rasga a letargia e dispara os químicos detonadores de todas as taquicárdias, bradicárdias e fibrilhações que transtornam cada canção. E, sim, Cohen: não pela configuração exterior mas, muito mais propriamente, interior – quase todas estas são “songs from a room”: “we’ll stay inside till somebody finds us, do whatever the tv tells us”, “they’ll find us here, here in the guest room, where we throw money at each other and cry”, “sometimes you get up and bake a cake or something, sometimes you stay in bed”, “Ada, I can hear the sound of your laugh through the wall”, “I wanna hurry home to you, put on a slow, dumb show to you and crack you up”.
Tudo farrapos de textos distintos mas que a estética da variável geometria de Berninger poderia ter feito coabitar por entre as quatro (ou muitas mais) paredes de apenas um. Desgostantemente civilizadas, “pink, young and middle class”, as personagens de Boxer “expected something, something better than before, we expected something more”, admitem que “we miss being ruffians, going wild and bright in the corners of front yards, going in and out of cars, we miss being deviants” mas, após mais uma “uninnocent, elegant fall into the unmagnificent lives of adults”, quando buscam um ponto de apoio, “I leaned on the wall and the wall leaned away”.
Parede falsa, império falso, vitórias esquálidas, “appartment stories” sufocadas, mas... que nada se mova, “all things are well, we’ll be alright, we have our looks and perfumes”. O pesadelo tem “room service” e ar condicionado. (2007)
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