APAGAR O VELHO BILL
Bill Callahan a fazer bolinhas de sabão em ambiente campestre. Bill Callahan, de mangueira na mão, a regar o jardim. Bill Callahan, em pose sobre a bicicleta, à entrada de um bosque frondoso. Bill Callahan em equilíbrio sobre as pedras de um ribeiro. Bill Callahan espreitando, tranquilo, por entre a folhagem. O Bill Callahan actual que, acerca do primeiro album, Sewn To The Sky (1990), dizia à "Record Collector": “A pessoa que gravou esse álbum. hoje, provavelmente não me reconheceria. O tipo de Sewn To The Sky via o mundo de uma forma diferente e não teria grande apreço por mim, agora. Esse disco é como um tag, a assinatura que alguém faz num edifício ou num comboio, para afirmar a sua individualidade. Apenas me preocupava a existência daquele objecto, pouco me importava se alguém o compraria ou não. Era apenas a satisfação, o orgasmo de, fisicamente, o ter criado” (menos amavelmente, já lhe chamou também “a monkey throwing shit on the walls”). Porque o artista anteriormente conhecido como Smog – até A River Ain’t Too Much To Love (2005) –, transformou-se no género de pessoa que, no ano passado, aquando da publicação de Shepherd In A Sheepskin Vest, abdicou de voar dos EUA para a Europa, preferindo conceder entrevistas por telefone ou FaceTime, sob o argumento de que uma viagem de avião de ida e volta Nova Iorque-Londres derrete 3000 metros quadrados de gelo polar. No fundo, tudo aquilo que, em mui económica síntese, anuncia na quase "naïve" "Let’s Move to The Country", do novo Golden Record: “Let's move to the country, just you and me, a goat and a monkey, a mule and a flea, let's move to the country, just you and me, my travels are over, my travels are through, let's move to the country, just me and you, let’s start a family, let’s have a baby or maybe two”. Uma espécie de aurea mediocritas revisitada com programa já em curso, tal como no anterior Shepherd..., seis anos em maturação, se relatava.
Se, nesse álbum, havia uma intenção implícita (“The old Bill was erased, then the new one had to grow”), o nascimento do primeiro filho obrigou a uma reinvenção do método, como contou, na altura, à “GoldFlakePaint”: “Nos primeiros meses, não escrevi nada mas, depois, recomecei a trabalhar todos os dias. Usei algumas dessas músicas mas foi mais como plantar uma semente. Esperamos que ela germine e nada acontece, nada continua a acontecer, até que, um dia, finalmente, cresce e pensamos ‘Não foi má ideia ter plantado aquela semente!’ Já gravei tantos discos que, neste momento, tenho a certeza de que não irei parar até morrer. Por isso, sabia que, em algum ponto, isso iria suceder. Apenas me intrigava o que deveria fazer para que esse processo recomeçasse. 90% emerge do inconsciente. Há coisas que me surgem imediatamente mas preciso de tempo para as digerir e encarar de uma forma que me seja compreensível”. A plantação foi tão fértil que, poucas semanas após Shepherd... ter sido publicado, durante os ensaios para a digressão que viria a seguir, Callahan correu para o estúdio com o guitarrista Matt Kinsey e, de jorro, gravou as 10 canções que viriam a constituir Gold Record.
Convém, entretanto, esclarecer que a frase “tenho a certeza de que não irei parar até morrer” não deve ser tomada à letra: Bill Callahan, não apenas garante “Não hei-de morrer. A vida é demasiado boa. Não pode acabar” como, confirmando-o, revela que uma frase de Lee “Scratch” Perry – “Quero fazer uma música de super-herói. Uma música do Bem que vença o Mal” – lhe conferiu super-poderes. E, logo a abrir o novo álbum, em "Pigeons", como que incorporando o espírito dos mestres, saúda-nos com um “Hello, I’m Johnny Cash” e despede-se assinando “Sincerely, L. Cohen” (mais à frente, dedicará outra canção a Ry Cooder, “So laid back and exact in his attack of the discipline, like a cat I wonder what bag he's next going to get in”). Pelo meio, escutamos uma prédica acerca das virtudes do casamento – “When you are dating you only see each other and the rest of us can go to hell, but when you are married, you are married to the whole wide world, the rich, the poor, the sick and the well, the straights and gays, how my words had gone over, well, I couldn't tell, potent advice or preachy as hell, but when I see people about to marry, I become something of a plenipotentiary, I just think it's good, as you probably can tell” – ministrada por um motorista de limousine a um par de recém-casados. O tom é sarcástico mas sério, em registo de recitação loureediana sobre arpejo de guitarra com pinceladas de trompete jazzy.
Já no ano passado Callahan aceitava de bom grado a ideia de que, aos 50 e picos anos, era altura para a personagem do jovem misantropo azedo ceder o lugar à de alguém que prefere concentrar-se na descoberta e preservação da felicidade em vez de desperdiçar o tempo obcecado pelo lado negro e ameaçador da existência. Mas talvez não se previsse quão fundo tal mudança de pele chegaria. “I can't see myself in the books I read these days, used to be I saw myself on every single page, it was nice to know my life had been lived before, but I can't see myself in the books that I read anymore” diz ele em "35", uma canção que, vá lá saber-se porquê, escreveu a pensar em Bonnie Rait mas nunca lhe enviou. E "The Mackenzies" é uma belíssima ilustração do princípio “You can’t be telling your son that we can’t go outside to the car yet because there’s a neighbour out there” – isto é, o inferno nem sempre são os outros –, numa encenação de clássico recorte-Raymond Carver. Mas, embora, aqui e ali, a ânsia pela interiorização dos estereótipos dos velhos heróis americanos (“Well, I've been living like a cowboy on the late, late movie, all I need is whisky, water, tortillas and beans and buffalo meat one time per week, and give me some loving when I come to town”) se abeire perigosamente da machorrice menos recomendável (“I can hear her out in the kitchen, making breakfast for me, I'm still in bed and I can see it all in my head”), é impossível não nos rendermos aos encantos desta colecção de canções abraçadas pelo contrabaixo caloroso de Jaime Zurverza e entoadas no timbre de velho barítono de Bill Callahan que nos segreda “I travel, I sing, I notice when people notice things”.
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