19 June 2019

NÃO É COMO SE MENTISSE 


Em 2010, por altura da publicação de Letters To Emma Bowlcut – o primeiro e único volume de ficção de Bill Callahan –, em entrevista a “The Quietus”, quando surgiu a proverbial pergunta acerca do carácter autobiográfico (ou não) da obra, Callahan respondeu: “Tudo deve ser autobiográfico ou não autobiográfico, sem nada pelo meio. É a única forma de lidar com esta velha questão na qual, vão desculpar-me, não estou sequer remotamente interessado. Embora haja quem a considere crucial para a apreciação de uma obra. De um modo geral, presume-se que os 'songwriters' escrevem acerca da própria vida porque podemos ver-lhes os olhos e sentir a respiração, através da voz. Mesmo se estamos a ouvir um disco, não a observar alguém a actuar em palco, podemos ver para onde os olhos se dirigem. Escutem James Brown, sabemos perfeitamente para onde está a olhar. As outras artes não são assim. Na pintura, no cinema, quem sabe para onde os olhos do artista apontam?” Acerca de Shepherd In A Sheepskin Vest, não há a menor dúvida – em "Son Of The Sea", do modo mais prosaico, em quatro frases, Bill Callahan esclarece tudo: “I got married to my wife, she’s lovely, and I had a son, giving birth nearly killed me”

 
 
Em Letters To Emma Bowlcut, tinha escrito “You have every right to ask me what I do, but I don’t think there’s a name for it. I study the vortex”. Era ainda o tempo em que partilhava com Springsteen (e um privado clube de danados) uma visão segundo a qual, “se somos artistas, as trevas são sempre mais interessantes do que a luz. É agradável quando, no final de alguma coisa, deixamos a luz entrar. Mas o que verdadeiramente me interessava era descobrir aquilo que tinha corrido mal”. Uma coisa não é incompatível com a outra, explica, agora, em "Call Me Anything": “I never was the things I said I was, but it's not as if I lied, what I was, all I was, was the effort to describe”. Não foi uma mudança de pele fácil (“Some say I died and all that survived was my lullabies”) nem a decisão de aliviar um pouco a obsessão pelos temas crepusculares (“É difícil evitar o tema da morte: é a grande anedota no fim da vida”) foi totalmente conseguida – a imagem da mãe recentemente morta assombra "Circles" (“I made a circle, I guess, when I folded her hands across her chest”), e aqui e ali, o reequilíbrio das coordenadas ainda vacila (“Life is changes, even death is not stable”). Mas, se foi o que era indispensável para gerar uma tão bela colecção de canções, valeu bem a pena. (entrevista aqui)

2 comments:

alexandra g. said...

"deixamos a luz entrar"

Isto alembra-me algo d'outrem :)

João Lisboa said...

Yep.